domingo, setembro 24, 2006

Silêncio tempo

À Mafas.
E não só.
Hoje sentei-me e lembrei do que disse uma vez. Disse-o para fora. Mas, acredita, disse-o a pensar em mim. E em tudo o que fui quando pensava naquilo que tu sabes, mana, porque ouves cada letra que arrancas da minha cabeça e cada palavra que me voa do peito.
Os olhos não mentiam. Ou melhor, o mover de olhos, brando e piedoso não enganava ninguém. Ela sempre tinha olhado bem em frente e de maneira tão audível! Agora definhava o seu sorriso e desfazia-se na ausência de lágrimas. Nessa altura preferi que chorasse.
Se assim fosse, eu abraçá-la-ia e limpar-lhe-ia os olhos do lápis borratado. E ficaríamos caladas naquele silêncio bom. Mas assim, assim não. Aquele silêncio esmagador que é o silêncio de quem nada pode dizer tornava-se infindo. E então falei. Falei para não estar calada. Mas ao falar, compreendi-a.

- É tão bom gostar de alguém. E doer a cabeça por essa pessoa, por vezes, não parece tão mau como esvaziar-se dela!
E aí percebi que não falava dela, daquele espelho reverso e tão semelhante a mim, irmã gémea tão fora dos genes. Não, eu não falava dela. Falava de mim. Falava de mim e do que não queria nunca mais falar. De ti. Porque contigo eu percebi esse silêncio bom. O silêncio de quem tudo disse naquele olhar, nas mãos daquele abraço, no cabelo, nos lábios e no espírito. Em mim. Mas não nas palavras.
Percebi principalmente o silêncio tempo. Não a palavra tempo. Esse mistério para os Homens, deixo-o a quem o quiser apanhar. O silêncio tempo é grande, muito grande, e muda tudo. No silêncio tempo, vivi-te, morri-te e fiz o luto, esqueci-te e voltei a encontrar-te. No silêncio tempo encontrei-te e agora sei que estás sempre aí. Porque és Goldmundo e eu Narciso. Porque sou espírito e tu alma. Porque amigos. Eu sei... Amigos naquela palavra que reservo para ti, para ela e para poucos mais, porque essa palavra maior não se diz. Sorri-se.
Fibonacci

sábado, setembro 23, 2006

Pedro tem asas

«Todos os Homens têm asas.
Pedro é Homem.
Pedro tem asas.»
Os anjos são pessoas boas.
Inês é boa pessoa.
Inês é anjo.
O que vive, morre.
Pedro e Inês vivem.
Inês e Pedro morrem.
Mas Pedro tem asas.
E Inês é um anjo.
Como poderam chorar?
Melhor viviam.
Melhor morriam.
Se os deixassem voar.
Fibonacci

domingo, setembro 17, 2006

Isto é só um copo

Finalmente. Música para ouvir de olhos fechados e sentir de mãos abertas. Finalmente. Música.
Música que antes de ser música era poesia. Poesia que antes de ser poema era sentimento.
Ouviu-a em apenas duas respirações, aspirou-a num só fôlego e deixou-se cair, cansada e espantada depois. Sim, finalmente música. E parecia que a banda sonora não acabava ali. De repente, sentiu como um salto na vida. Uma independência. Uma vontade de mudar o visual como nunca tinha feito. Um novo look. Não. Uma nova atitude. Apenas uma vontade de nunca mais andar com as costas curvadas. Ser como era e tinha muito orgulho em ser.
E em toda a esfera, a vida parecia-se cada vez mais com aquela música. Chorava as canções que cantou para si mas apenas queria abraçar a lua aquela noite. E nunca mais pensar só em si para estar sóbrio.
As coisas não tinham o mesmo significado. Em nada. Não, não ia seguir um curso normal, cheio de educação e boa vontade. Não, iria para as terras mais longíquas estudar o que sempre tinha sentido como a sua verdadeira vocação. Vocação, não, paixão. Devoção. Criptografia. Uau. Que nome pomposo. Nome perfeito para esta nova fase.
Os últimos acordes marcaram o fim daquela música. Fase. Hmm... Nunca tinha gostado daquela palavra. Fase. Passageira. Efémera. Maligna. Mas também o contrário a assustava. E, se a arte é tão efémera assim, porque não o pode ser a própria atitude? Talvez daqui a um ano descobrisse que tudo não passava de mais uma fantasia e voltasse para a sua licenciatura bem portuguesa e estável. Mas agora, agora não.

Replay.
Do início o som, segundo zero.

Afinal, que mais é ter dezasseis anos?
Fibonacci
Isto é só um copo
Eu não bebi de mais
Achei que era diferente
E são todas iguais.
Escrevi canções sobre ela
Mil noites sem fim
Deixou-me neste bar
A cantá-las pra mim

Eu bebo da garrafa
Tomo um gin de manhã
Se oprincipe era o sapo
Ela devia ser rã.
Eu amo quem eu sei
Que não me vai amar
Mas só assim me dá
Vontade de cantar

Mas a dor insiste
Não dá pra esquecer
Mas o peito insiste
E não a deixa morrer

E eu não vou deixar de beber
Como gin
E para estar sóbrio não basta
Só pensar em mim

Nao era isto qu’eu queria ser
E o que me deixa mal é o que me faz viver
Sinto a roupa fria e o corpo dorido
Sinto o cheiro a vinho mesmo sem ter bebido nada

Isto é só um copo
A boca já me arde
O homem varre o chão
E diz que já é tarde
“Senhor só (bon voyage) é hora de fechar”
A lua é a mulher
Que hoje vou abraçar.
Ornatos Violeta - Dez Lamúrias por Gole

domingo, setembro 03, 2006

Roda Viva

Ela nunca pensou que isso pudesse mesmo existir. Uma terceira dimensão. Sempre tinha tido as suas coordenadas fixas: tempo e espaço. As palavras mais confusas, as declarações mais apaixonadas e os discursos mais preserverantes. Tudo o que dizia, respirava, escrevia e o que, no fundo, a guiava eram sempre precedidos do tempo e encontravam-se no espaço.
(Hoje, (...) Sim, hoje! Percebeste bem? (...) Não, isso só posso entregar amanhã. (...) Onde? Claro que estará lá!)
Mas o tempo passou.
E agora o tempo só é preciso para dizer «Agora já não há tempo».
E não sinto o tempo, nem a distância. Só o mar.
E, sim, estou com os sintomas da saudade.

Por Chico Buarque e Fernanda Porto,
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda peão
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola pra lá
O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade pra lá
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda peão
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
Chico Buarque
Fibonacci