domingo, novembro 26, 2006

Parêntesis (Paraíso)

«Sinto quente. Muito quente. Estranho calor emana do paraíso, julguei que as chamas alastrassem lá por baixo, mas ao que vejo não. Ou melhor, sim. O calor emana é de mim. E esta claridade escura-me e vejo as minhas palmas azuis, tão frias. Frias não, pouco quentes. Complementaridade de bases. Desvarios absolutos e genéticos. Quente, frio, que é isso do morno! O frio tem o poder do calor. Do teu calor. Do teu calor que me assombra e arrepia. Porque quando tu me pegaste, como folha, folha papel, folha árvore a cair, como folha rasgada tu pegaste em mim e eu perdi-me, espinha abaixo. Imagino imagens sem nexo e coerência lógica. Tão reais, mesmo assim. Passou, foi um sonho real que nem me apercebi. Paraíso. Calor. O Teu. Frio meu, desvario em febre. Pegaste em mim e pegaste-me a febre que não tinhas. Sinto quente. Muito quente. É o paraíso. Não, é a febre.»

de um diário que só li porque estava aberto

Desafio

«O Amor é esquisito.
O Amor não serve para nada.
O Amor escreve-se com letra maiúscula por pura vaidade dos
Românticos que se perdem na Palavra que também leva maiúscula porque,
na Verdade,
não existe.
O Mundo não foi pensado para levar com
Aquele Amor à mistura.
Gosta mais do Amor fácil dos doces Olhos amargos bem
Cerrados.
E falangetas bem abertas.
Aquele Amor nunca serviu para nada.
Só estragou Vidas e construiu Verbos.
Desperdício!
Dão a Vida por Palavras que agora, ao olhar para
Mim
Se calam.
Riem-se.
Berram, histéricas.
Calem-se, ridículas!
Não vêem?
É tão bom o amor assim.
Eu não preciso de vocês, nem das letras grandes,
Nem das grandes letras,
Nem dos gritinhos extasiantes.
Eu danço.
E ele gosta.
Isso é amor.
Com letras pequeninas.
Porque fora da nossa alma
Porque o esboço do espírito
Porque o canto do mudo mundo
Porque o amor não gosta que o vejam
Porque quer que o sintam.»

Não foi Fibonacci,
foi alguém que lhe disse
e, sem dúvida, que concorda.
Que nos perdoe Shakespeare no seu túmulo
que para nós o amor nunca vai ser assim.

sexta-feira, novembro 24, 2006

No fundo de um de nós.

Já ali estava há algumas horas. Sem nada que fazer, pensavam os seres não-pensantes que por ali passavam sem sequer olhar. Claro, nada que fazer! Quem fica assim tanto tempo, na estação, sem entrar no comboio, sem abraçar pessoa alguma que chegasse, sem mesmo olhar para os vultos que saíam, ali, à noite?
S. Bento, à noite, e Lúcia ali parada, sem nada para fazer.
Nem mesmo um cigarro. Lúcia não fumava.
Nem mesmo um livro. Lúcia lia, mas porque raio havia de ler numa estação de comboios?
Nem mesmo um olhar esperançoso, num raio x à multidão, a ver se encontrava alguém. Lúcia não queria encontrar ninguém.
Por isso se especou ali. Onde os passos redobravam as vontades de amar e onde o excesso de pessoas cansava ao ponto de se sonhar sozinha.
Tudo aquilo porque tudo o que esperara chegara. O problema do que chega é que passa e Lúcia queria mais. Mas porque é que nunca ninguém lhe havia dado mais? Lúcia queria a eternidade. E a eternidade, sabia, não existe sozinha.
Era isso que Lúcia olhava ali, especada entre tantos relógios, o tempo. Porque só agarraria o espaço atemporal quando percebesse o tempo. Porque só amaria quando visse a solidão.
Lúcia queria morrer à noite e acordar de dia, afundada de cor. A felicidade instantânea, essa, deixava-a para os mortais. Ela precisava de alguém que lhe oferecesse a cura para o tempo e para a solidão. E esperava esse alguém ali, nos comboios, esperando que quando passasse lhe dissesse olá.
Foi ali que encontrei Lúcia. Quando me contou isto não acreditei nela. Doida! Mas eu conhecia-a tão bem. Não sei donde. Talvez ali, dos comboios.
Gosto de pensar que sou diferente dela.
Estou cansada de tentar fugir disto, disto que se calhar nem existe! - disse Lúcia.
«Amar é bom se houver no fundo de um de nós alguma solidão»
Talvez.
Ou talvez não.
Não sei.
Fibonacci

domingo, novembro 19, 2006

Rituais

« - O que é um ritual? - disse o principezinho.

- Também é uma coisa de que toda a gente se esqueceu - disse a raposa. - É o que torna um dia diferente dos outros dias e uma hora diferente das outras horas. Por exemplo, os meus caçadores têm um ritual. À quinta-feira, vão dançar com as raparigas da aldeia. Por isso, a quinta-feira é um dia maravilhoso. Eu posso ir passear às vinhas. Se os caçadores fossem dançar num dia qualquer, os dias eram todos iguais uns aos outros e eu nunca tinha férias.»

O Princepezinho, de Antoine de Saint-Exupéry

Porque eu deixava a porta aberta e tu, gentilmente, limpavas os sapatos no tapete. Inútil, claro, pois logo que entravas tiravas os sapatos e a gravata e as preocupações. Mas era o nosso ritual.
E era a nossa casa.
Era tão bom na nossa casa!
Lá eu espectava tudo isso como mais um desconcerto lógico de ti, tão usual e tão raro, nessa tua e minha alma, a nossa casa.
Mas eram cada vez mais e mais rituais na nossa vida que depressa esquecíamos que eram sagrados e invioláveis e secretos, pois toda a gente os via. Cada vez mais que eram menos. Que tu já faltavas. Que eu gritava o silêncio daquela culpa que me agrilhava ao que não devia. Porque se te olhava fora daquele ritual só nosso, tinha vergonha e medo que já não fosse importante para ti. Porque se me encontravas na Terra, no solo, no chão, eu tinha medo de não passar do rastejo, de ser mais uma a carregar a suave maldição de Eva.
Era tão bom na nossa casa!
Na nossa casa, eu era anjo, e nas pontas dos pés nós agarrávamos estrelas.
E voávamos, na nossa casa, em dois passos de dança, nós voávamos.
Quem dera o mundo revirasse os seus ideais e nos deixasse fazer da Vida um só ritual.
Um ritual de espera, o ritual do encontro.
Do vôo.
Da música.
E da dança.
Fibonacci

Vila Viçosa, 16 de Fevereiro de 1999

« (...)
Muita gente liga, António, muita gente. Gente tão diferente, gente do campo e da cidade, doutores e crianças... Muita gente liga e eu assisto surpresa todos os dias aos pedidos previsíveis daquela gente e às ainda mais pressentidas dedicatórias. Amor. Tudo dedicatórias de amor. À mãe, ao pai, à filha e ao genro e mesmo à tartaruga da Joaninha! Mas sempre amor.
(...)
Vivo feliz todos os cinzentos e santos dias com esta gente que para lá liga e insiste em me chamar doutora, apesar da minha licenciatura ser filha única. E mandam bolos para a redacção, para a Sra-Dra-do-Pragrama-da-Noite. Quando o Ferreira, o técnico, se entretém a baralhar esta gente, lá ouço um Dra. Milinha da Maia (vergonha das vergonhas para minha mãe que, como sabes, nunca outra coisa permitiu lá em casa que Emília).
Muitas noites passo assim, das 11h às 2h, o programa da noite da Rádio Viçosa. Discos Pedidos.
Tu sabes, António, o porquê da mudança do gigantesco e assombrador Solar de Vila Viçosa para o pequenino estúdio. Mas és o único. (...) Desde há muitos anos que aquela rádio é a minha casa. Aquela gente que liga é a minha família. Conheço a todos pelo nome, a Vila é pequenina, e toda a gente me faz companhia quando pode. Até mesmo o Sr. Padre, sabendo que num dia não ia ter muitos ouvintes, lá ligou, pedindo "aquela do bailarico que agora anda aí muito na moda" e após inúmeras insistências frustradas de saber pelo menos o nome do artista lá levou com o último hit no countdown de Vila Viçosa.
(...)
E foi sempre assim até àquele dia em que ele me ligou. Eu não o conhecia, António, não mesmo, eu juro. Juro-to a ti já que a mim nunca me vou convencer disso, pois mal ele falou eu soube que havia algo nele que eu sempre soubera. Porque não somos o que somos, somos o que fomos e o que havemos de ser, já dizia o Padre António Vieira.
Mas nessa noite, foi outro o disco. Ele ligou e não pediu música, pediu-me a mim. Disse que precisava da minha ajuda e eu da dele. Disse-me que sempre me tinha conhecido e eu a ele. Disse-me para ir ter com ele. Disse-me isto tudo, em directo, na Rádio Viçosa. Disse-me tudo isto e, como por magia, ninguém ouviu. Naquele dia, ninguém ouviu o programa, nem mesmo o Ferreira, que, por vezes, adormecia.
E eu, sabiamente louca, fui. Fui ter com ele, no fim da emissão, aonde dissera estar. Mas não o encontrei, não estava lá.
Nunca mais o vi, nunca mais me ligou. Continuo à sua procura, continuo a tremer cada vez que toca o telefone na redacção à espera que seja ele. Continuo a acreditar que precisava muito de mim e que eu não fui a tempo de o ajudar.
Ajuda-me tu, agora, António, que eu já não consigo mais.
Peço-te, por favor, que me deixes visitar-te aí no Porto. Tirei férias. Preciso do mar. Preciso de pensar. Preciso de ti.
Responde logo que puderes.
Sempre tua amiga,
Emília.
Fibonacci

terça-feira, novembro 14, 2006

Porque

«Sei que o que tinha de ser se deu
Porque era ela
Porque era eu»
Porque eras tu e ele.
Foste tu que lhe faltaste ali
no sítio onde estava
Foste tu quem lhe lembrou a música
que o outro tocava
Foi o teu vôo que ele contemplou
a luz d'oiro do sol
que à meia-noite aparecia.
Lua redonda, sol de dia.
Uivam os lobos à lua cheia
Pé de meia p'rós ovos na mesa
E uiva ele à menina
que de merdinha enche os seus olhos.
Abrindo-os e fechando-os
num ritmo desacelarado e brutal
Que acorde aquele tal
que adormeça
onde é que isso lhe interessa?
Ciúmes à porta rangem.
Palavras à porta ficam.
A culpa foi toda do beijo!
Pelo que vejo do prazer
não é no fim
assim
tão fácil.
- Mea culpa.
- Desculpas aceites.
- Mas que bonito o amor andará! Tens razão... Mais nada de mim sairá.
Fibonacci

Letra inicial da música
"Porque era ela, porque era eu"
de Chico Buarque

domingo, novembro 12, 2006

Maria

Todas as persongens desta história são fictícias.
Qualquer semelhança com o real é puro acaso.
Lúcia andava de um lado para o outro no quarto. Não sabia o porquê de tudo aquilo agora. Tanto tempo depois. Tanto tempo depois tinha de se lembrar. E tinha de viver tudo outra vez? Não era justo. Não queria viver outra vez aquele dia.
Nesse dia, como de costume, Maria falava e Lúcia ouvia. Desenganem-se, esta Lúcia é outra. Dois anos antes, estava practicamente irreconhecível. Apenas por fora, claro. Mas continuando a nossa história: Lúcia ouvia o que Maria falava. Porque Maria falava bem.
Mas Lúcia estava já farta. Farta de tanta hipocrisia da sua parte, farta de tanta mudança por parte de Maria.
Oh Maria! Onde andas tu, hoje?
Maria era a rocha, Maria era a Vida, Maria era simplesmente Maria. Mas Maria hoje já não era mais Maria. Desde aquele dia.
Lúcia cresceu tanto nesse dia.
Tanto que explodiu: "Maria, já não aguento! Quando quiseres voltar ao que eras, eu vou estar aqui. Mesmo que já ninguém esteja, eu espero por ti. Até lá, não me faças cúmplice disso. Até lá, Maria."
E Maria só respondeu, friamente: "Tenho muita pena que penses assim."
Lúcia saiu, vagueou dois anos pela rua, cresceu, desescondeu-se das saias de Maria. Para ela, Maria morrera.
Bela morte a de Maria!
Lúcia chorou-a. Lúcia fez os quarenta dias de luto negro. Depois fez-se à Vida.
Mas ontem Maria voltou. Maria voltou àquele mesmo lugar onde juntas tinham chorado e rido tantas vezes. Onde Maria ensinara a Lúcia tudo o que sabia e onde Lúcia absorvera toda a informação e carinho como se de um sacramento se tratasse. Como uma benção dum céu nunca idolatrado.
Maria voltou.
Mas Maria não foi ter com Lúcia, como lhe havia prometido. Maria cumprimentou Lúcia, como simples conhecidas e Maria seguiu em frente.
Maria riu.
Lúcia chorou.
Chorou de saudade.
Chorou do síndrome da abstinência que tinha feito de Maria durante dois anos.
Chorou porque queria Maria de volta.
Chorou porque Maria não queria voltar.
Fibonacci

Quando pára o samba

A lua não era redonda e as estrelas não brilhavam. E se tal acontecia não importava porque Lúcia não queria que a lua fosse uma salva de prata nem as estrelas uma outra de palmas.
Para ela, a noite era feia, tinha de ser, porque só isso tinha lógica.
Aquele baile estava a ser uma valente porcaria, pensou. Só pessoas a fingirem-se de interessadas na música pseudo-interessante que saía da grafonola a fingir de velha e a cair de podre. Que felizes estavam as pessoas! Dançavam a valsa e rolavam ao ritmo do passado. Estúpidos! Não era de ver então? Faltava ali os ruge-ruge dos vestidos. E o flap-flap das pestanas postiças. Ninguém pode dançar a valsa de calças de ganga! É estragar o sonho...
Aquele baile estava a ser uma valente porcaria, pensou.
Oh! Quem lhe dera lá estar...
«Você só dança com ele
E diz que é sem compromisso
é bom acabar com isso
Não sou nenhum Pai João
Quem trouxe você fui eu
Não faça papel de louca
Pra não haver bate-boca
Dentro do salão
Quando toca o samba
Eu lhe tiro pra dançar
Você me diz: Não
Eu agora tenho par
E sai dançando com ele
Alegre e feliz
Quando pára o samba
Bate palma e pede bis»
O fim da música acordou Lúcia outra vez. Sim. Tinha a certeza que ele lá andaria, no meio ruge-ruge das calças de ganga, entretido com o flap-flap das sandálias espartanas. Porcaria de baile! Tinha de acontecer...
Mais um evento para lhe lembrar como o Mundo se tinha esquecido de reservar uma hora para o Amor. Ou para a Música. Ou para Rir. Vá lá, Lúcia, não sejas mesquinha. Isso é tudo a mesma coisa. O Mundo simplesmente já não acredita em nada disso e, a ti, não tas vai deixar conhecer. Vai-te mentalizando. Ou acordas para a Vida ou a dormes toda no sonho.
Mas eu não quero acordar. Desde que também sonhes comigo...
Oh! Aquele baile estava a ser uma valente porcaria, pensou.
Fibonacci

Música de Chico Buarque, «Sem compromisso»

quarta-feira, novembro 08, 2006

Ode ao Narcisismo que Apetece e ao Amor Puro

Ode ao Narcisismo que Apetece
e ao Amor Puro
«Ele não é Narciso
Mas ele gosta de mim
Ele não tem qualquer encanto
Tirando o facto de gostar de mim
Eu sei quem ele é quando tenta ser secreto
Só porque gosta de mim
Mas ele não me tira do sério
Excepto quando me diz que gosta de mim
E eu nem gosto dele
Mas ele gosta de mim»
Só tu, Amor Puro,
Sim! Tu que também gostas de mim
Não me dás a consolação de gostar
De te ver a contemplar e me sentir admirado
(Admirável Mundo Novo)
Algo nunca falado...
Mas isso eu sempre falei!
De que importa de quem gostei?
Ou de quem me olha assim?
Tu sabes, sempre soubeste,
Que és a metade de mim.
És tu o meu ego exacerbado
Num único espírito,
O meu único Fado.
Autor-que-não-quer ser-identificado
Porque o Amor Puro às vezes tem destas coisas. Destas coisas de se rir do Amor em Vão. Porque o Amor Puro foge hoje para viver para o amanhã que se esconde. E porque o próprio Amor Puro também se esconde atrás do tempo e gosta de jogar ao gato e ao rato.
Porque isto diz tudo o que quis dizer, não me posso deixar de acreditar.
Porque isto não diz nada de novo, não posso deixar de desconfiar.
Obrigada a quem me roubou as palavras.
Fibonacci

sábado, novembro 04, 2006

Chocolat

Que bom era!
Fora de mim sem me queimar.

Vejo a liberdade a correr, pela janela
(ou será só o vento?)
Essa liberdade maluca mete-me inveja.
Quem dera pudesse ser assim
não ligar a quem fala por mim
fazer ouvidos moucos
aos sussurros roucos que perturbam
aquele que eu imaginei perfeito.
Mas perfeito não
Perfeito é a solidão
Porque a solidão não tem tempo
nem espaço, nem outras pessoas
a solidão não tem vergonha
a solidão anda nua pela rua
a solidão diz que vale a pena sonhar
a solidão canta enquanto foge do luar
a solidão desenha cidades a lápis.
E a única consolação que lhe sobra
à pobre da solidão
é a saudade.
E a liberdade.
(Aquele vento sem eira nem beira)
Claro que a solidão sozinha
é frio, chocolate quente.
Posto isto, perfeito
perfeitamente
Não vens comigo?
Fibonacci