sábado, dezembro 23, 2006

O dia em que nevou no mar

Dizer pouco é bom, pensava enquanto esmigalhava areia pelas luvas. Dizer pouco sabe bem mas há uma sede de aqui voltar, mesmo quando nunca cá estive.
O céu era bonito. O céu era estrelas, bem separadas, pontos brilhantes, definidos e calados.
O céu era mar. Não vinha ver o mar fazia muito tempo, falar com ele, bebê-lo pelos olhos, pela boca e pelos ouvidos. O mar era sempre esquecido nesses dias. O mar e o céu com as estrelas separadas.
Queriam neve, queriam frio, queriam música!
E o mar nessa noite era música, celestial e açucarada.
O mar era frio, frio bom, frio das luvas, que faz rir.
O mar era também neve, neve no seu estado mais escondido, mais humilde. Era neve também que abandonava as levezas fúteis do branco. Era neve azul, mas neve.
Nunca conheci outra neve, disse, talvez demasiado alto para o co-habitante da praia. Dizer muito sabe melhor na neve. (O caranguejo não concordou e correu a rir-se de mim.) E na lareira. E no fogo que mata neve. E no fogo que vem da neve. Da neve branca. A neve azul não puxa fogo. É inócua. É por isso que ninguém a ouve por estes dias. Ninguém sabe o que inócua quer dizer.
Dizem pouco, pensei calada outra vez. Mas dizer pouco é bom.
Fibonacci

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Onde?

Querida Maria,
Já lá vai um tempo desde a última vez que nos vimos. Espero que esta te encontre de boa saúde. Como vão as coisas por aí?
(...)
Não, não te deves estar a interrogar porque motivo escrevi. É Natal, certo? Toda a gente escreve pelo Natal.
Mas o meu problema é mesmo esse. Não encontro o Natal em lado nenhum, Maria, não encontro.
Nem nas janelas. Nem nas portadas. Nem nas lareiras. Nem nas fogueiras. Nem nos barulhos. Nem nos embrulhos. Nem nas figuras. Nem nos anjos. Nem nas músicas. Nem nos ruídos. Nem nas luzes. Nem nos sentidos. Nem na comida. Nem no frio. Nem na multidão. Nem no vazio.
Muito menos em mim...
(...)
Eu queria o frio que nos lembra o calor, sabes? É tão bom... Eu queria a minha mão a trabalhar. Eu queria comida para dar.
Eu queria luz das velas, não dos candeeiros. Eu queria anjos feitos de sonhos, não de carne e osso. Eu queria sentir cada momento, Maria, cada pessoa, cada melodia. Eu bem queria!
Mas o Mundo já se encarregou de me mostrar que o Natal não é sempre que o Homem quer. E mesmo às vezes nem 25 de Dezembro é. Temos sorte, quando há Natal. Ele tem de ser bem cultivado, desde cedo, com muitas cuidados. Como o Principezinho fazia com a sua rosa, lembras-te? Mas eu, eu esqueci-me da redoma e agora não encontro o meu Natal. Tenho pena, é mais um ano a esperar. E a rezar muito, não vá o Mundo fazer das suas.
(...)
Oh, eu sei! Tenho a minha parte de culpa.
(...)
No entanto, talvez saiba onde o posso encontrar. É a minha última hípótese.
Acabo aqui por hoje. Tenho de procurar.
Um beijo enorme desta que te adora.
Sempre tua,
Lúcia.

Quiçá (Ferida Aberta Noutro Peito)

Talvez o que sempre é tudo, voe.
E o que sempre é riso, chore.
Foi sol, é água, é terra.
Foi fogo, é neve, é feliz.
Talvez a raiva arda
Talvez a saudade enjoe
Talvez a fuga incandescente não sirva
Ou talvez não.
Talvez um beijo inconsciente nos cure, ao de longe.
Talvez alguém nos dê a mão.
Ou talvez outrem nos roube o que é sagrado.
Foi sagrado, é templo, é tempo.
Porque a cabeça abana condolente
sempre, foi assim
(o vento é pária, é nossa sina!)
Mas não quando a brisa roça perto.
Aí, cola-se a nós O Fim.
Talvez.
Ou talvez não.
Não sei.
Quero acreditar em algo maior.
Quero acreditar na transformação.
E o que era Vida, ultrapassa-a.
E o que era caminho, torna-se perfeição.
E o que era Amor, engrandece-o.
O que era Esperança, é Salvação.
Talvez.
Ou talvez não.
Fibonacci

terça-feira, dezembro 19, 2006

Uma última batalha

O corpo linchou a alma.
O mar engoliu o barco, cego e feio.
A terra caiu sobre o Homem.
O cavalo pisou o guerreiro.
As ondas que batiam cansaram-se
Da areia sovada que se calou.
A lança caiu estridente marcando
O chão, a raiz que urrou.

Num grito sem gravidade, celestial,
As cabeças unânimes levantaram
A voz ao céu (e os entes que lá dormem, brilharam!)
Na luz partida do orvalho,
Numa via sacra final.

A alma sobrevoou o corpo
Despedindo-se num beijo demorado.
E o tempo, esse tempo, riu-se, afinal
São só os nossos pedaços o pecado.

Porque viver por ti é mais que viver
E morrer por ti é nascer
outra vez
Eu vi
A terra absolver
O Homem.
O Homem que já nem Homem é.
É mistério.
É melhor.
É fé.
Fibonacci

domingo, dezembro 17, 2006

A tree called life

Porque às vezes tudo o que possa dizer soa a plástico, é tão vão de sentido.
Porque às vezes "perco um continente", perco uma ilha e "uma chave" e a maravilha cai estridente no chão. E do pó se levanta a voz que todos conhecem e ninguém reconheceu.
Porque às vezes me apercebo, e deviam ser mais os dias, que não me expresso tão bem como isso.



I carry your heart with me
by E. E. Cummings


I carry your heart with me (I carry it in
my heart) I am never without it (anywhere
I go you go, my dear; and whatever is done
by only me is your doing, my darling)
I fear
no fate (for you are my fate,my sweet) I want
no world (for beautiful you are my world, my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you
Here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life; which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart
I
carry your heart (I carry it in my heart)

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Sempre, corria sempre


Filípides continuava a correr. Sempre. Corria sem força nas pernas, corria com a cabeça balançando ao ritmo do corpo, caída como morta ao lado do pescoço. Corria sem réstia de ar nos pulmões, corria sem pingo de água no seu corpo, dado que esta escorria pela sua pele, encharcando a sua túnica. As sandálias mal lhe protegiam os pés do caminho pedregoso, mas, oh isso!, isso ele já nem sentia. Filípides corria apenas com uma réstia de esperança.
De Atenas até Esparta, de Esparta até Maratona. Ainda não sabia bem porquê. Esperava no seu mais profundo pensamento que a mensagem que trazia animasse as tropas por apenas mais um bocado. Que aguentassem, os espartanos vinham a caminho!
Filípides via tudo como um filme, como se já tivesse passado há muitos, muitos anos. Como se isso fosse possível! E corria. Sempre, corria sempre.


Chegado à planície, viu Maratona coberta de corpos estendidos no chão. Quanto mais se aproximava, mais os semblantes dos estrangeiros contorcidos na poeira do chão e os seus trajes, tão estranhos!, lhe indicavam o caminho para o campo da Morte. Aí, caiu aos pés do General. Sem fôlego, quase sem vida, Filípides sussurrou o fardo que transportara ao longo daqueles quilómetros. Milcíades sorriu, escarnecendo. Pois que viessem. Bem que tinham caído seis mil persas e apenas uma centena dos seus Homens. Agora, ai agora! Agora vinham os espartanos.

Olhou então o rapaz que, deitado no chão de pedra, dava-se por caído. 220 quilómetros os separavam Esparta. Aquilo era um esforço sobre-humano. E foi então que o enviou novamente. Apenas mais 40 quilómetros. Era preciso alguém para anunciar a vitória em Atenas e nem um cavalo o poderia fazer tão rapidamente como um corredor treinado.


Filípides correu, assim, sempre subindo até encontrar o pequeno tempo de Dionísio. Aí, parou. Agora nem o seu metabolismo o ajudava. Não tinha água, mas também não tinha sede. Não tinha já sandálias, mas também achava que já não tinha pés. Corria apenas pela força de vontade. Se ao menos o seu corpo compreendesse! Se ao menos um dia o perdoasse...


Filípides nunca mais se lembrou dos 25 quilómetros, colina abaixo, que o separavam de Atenas. Correu inconsciente, transportando algo maior do que o seu corpo aguentava: um novo futuro para Atenas. Para aquela Atenas que ao longo dos séculos seria lembrada como uma das maiores civilizações do mundo. Aquela Atenas que, a partir daí, começaria a desenhar o futuro de algo maravilhoso para o mundo: a democracia.


Mas Filípides nunca soube disto.

Chegado à Pólis, gritou com todas as forças que lhe restavam: «Atenas venceu, celebrem!».
E expirou.
Olhei rapidamente para trás. Mas não consegui ouvir mais que um ruído rouco.
Fibonacci

sábado, dezembro 09, 2006

Rainha de Copas

Mais uma viagem? Deves estar a brincar... Até parece que não te conheço! A ti e aos teus joguinhos, que nos levam tão lá abaixo. Afundamo-nos no menos-infinito. Olhamos para cima, de bruços, num caixão, o eixo das ordenadas a apontar o infinito e o céu que não nos quer, aqueles pontos de descontinuidade que nos matam devagarinho.
Não vais ter sorte nenhuma, dizem, ai não.
Tal como eu.
E se descermos mais uns andares? Somos intrusos, eu sei, invasão e abordagem. Antes espiões. Cépticos. Muito cépticos. Podíamos lá descer pelo menos mais uma vez. Hécticos. Uma dorzinha de alma e comichão no cotovelo. É do frio, eu sei.
Dizem-me que não há nada como quem nós queremos ou como quem nós perdemos.
(Ou como quem nos perdeu... - Ah ah! Que não jogasse!)
Agora que as folhas se queixam do carvão, eu vou ouvindo os seus latidos enquanto me perco, espinal medula abaixo. Nervos. Bem lá abaixo está uma cave de números menores que zero. Cada vez mais menores. Tanto que me obrigam a esquecer por um bocado a gramática que não foi criada para os expressar (são cada vez mais pequeninos e irreais!).
E eu tão grande!
Sinto-me uma Alice num País sem Rainha de Copas. A cair, eixo abaixo. Se ao menos voasse. Ou uma tangente. Ou uma chave.
«É por isso que andas atrás dela e ela atrás dele. Mas dizê-lo não vai mudar nada. Não, não.»
Mas isso não me importa. Sigo o coelho enquanto espero que um sonho me caia no colo. Bem que é certo: é mais fácil sonhar de olhos bem abertos, a olhar o infinito de estrelas que não vemos.
Mas eu sei que lá estão.
Consigo ouvi-las.
Baixinho.
Perfeitamente.
Fibonacci

Excertos de "No Buses", Arctic Monkeys

terça-feira, dezembro 05, 2006

In a manner of speaking

Numa maneira de me expressar, tão comum de tão rara que é, silencio-me num sorriso mudo. Corro o cabelo do papel e a caneta cansada da semântica que me confunde e se ri de mim. Imploro-te de lábios selados por um grito infindo, uma palavra calada, morta e ofegante no chão. Uma palavra em que tu pegues devagar, um passarinho caído que voltas a sossegar no ninho, numa manhã opaca e branca de Inverno.
Sem dizeres nada, eu percebo-te. Gostava de aprender a voar como tu, nas bancas rasgadas das ruas do Outono e das castanhas; voar como uma castanha.
Naquela certa maneira, eu gostava de ser como tu e calar-me como um livro. De uma certa forma, gostava que percebesses calado que o meu grito não é assim tão fútil e o meu silêncio é a paz do guerreiro que cai do cavalo. Gostava que percebesses que as minhas palavras são tuas, são teu reino, mandas nelas. Gostava que baixasses sempre o polegar, pois, com a outra mão, tu ias levantar a minha face cansada e o meu queixo senil. A tua sentença de morte é a menina dos teus olhos e o remate à minha esperança. A esperança de veres as palavras que calas nas minhas que grito.
O mundo idolatra-te, orador, porque não dizes uma única palavra.
E porque, quando dizes, elas nada significam para eles.
Só para mim.
Tanto para mim que grito.
Fibonacci

Poder de síntese

Tu.
Quem? Eu?
Não mais de uma palavra.
Palavra e meia.
E nem mais um grito, talvez um olhar.
Palavra e meio olhar e estamos combinados.
Para mim?
Para mim.

domingo, dezembro 03, 2006

Tenho-te saudades

E o pior é que não,
pois não.
Pois posso!
e digo-o e tu ris,
sabes tão bem para quem é.
Claro que estás
redondamente
enganado.
Tão enganado.
Rio do teu engano redondo.
Rio que serpenteia numa tonalidade acre
e doce.
E nas doces margens
pára
para
descansar.
Nunca pensarás que é de
ti
mas tenho-te saudades.
Saudades redondas.
Fibonacci