terça-feira, março 27, 2007

Não deixes

Eu vi que eu sou capaz
Eu posso até sentir
Isso vai fazer-nos tão bem
Não nos deixei mentir
E agora tanto faz
Vou dar o mundo a quem
E aparece assim
Acendeu-se a luz
Estão vivos outra vez
Amar é bom se houver
No fundo de um de nós
Alguma solidão
Eu calo a minha voz
É tão bom ser mulher
Descobrir quais são
E aparece assim
Acendeu-se a luz
Estão vivos outra vez
Se é tão bom de ouvir
Vivo para ti
Até o nosso amor morrer
Se eu não for capaz
Eu espero vê-lo em ti
Eis como me ajudar
Sentir não é mostrar
E dar não é sentir
É morrer em paz
E aparece assim
Acendeu-se a luz
Estão vivos outra vez
Se é tão bom de ouvir
Vivo para ti
Até o nosso amor morrer
Mas deixa o nosso amor morrer
Deixa Morrer, Ornatos Violeta
Não o deixes morrer. Não. Não me ajudes. Não te ajudes. Sentir não é mostrar. E dar não é sentir. Sentir é algo muito mais infinitamente maior que morrer. Não deixes o nosso amor morrer, não o deixes morrer que ele ainda não sentiu. Porque sentir é dar e dar como quem recebe ou receber como quem dá. Como quem sente.
E eu vivo para ti, eu calo a minha voz. E a tua, e a do mundo. Enquanto ele viver, eu nem vivo nem morro. Eu só sinto. Sinto como quem dá e como quem mostra. Como um grito que se dissipa na atmosfera rarefeita, um grito como uma melodia estranha, a harmonia perfeita do Homem e do gesto. Do vácuo e da nossa velocidade nele, superior, mas tão superior!, à da luz ou do som.
Amar é tão bom se houver no fundo de um de nós alguma solidão. Mas daquela solidão tão própria, a solidão acompanhada. A solidão que sorri sozinha quando alguém aparece sem seres tu ou eu. A solidão que é solidão na distância e ainda é mais solidão no abraço. Na angústia desesperada de somente o próprio amor saber que quer viver. Se nem nós...!
Mantém-no vivo, ele não precisa de estar ligado às máquinas.
Não o deixes.
Deixa-o sentir.
Talvez assim ele viva.
Fibonacci

domingo, março 25, 2007

A mesma

«Gosto quando a minha mãe pega no meu cabelo.
Dizem que sou parecida com ela, em certas expressões, igual.
Gosto quando pega no meu cabelo e tenta entrelaçá-lo, em vão.
Dizem que temos o mesmo feitio e isso sinto-o na pele. Na minha e na dela.
Gosto quando, ao entrelaçá-lo, se debate para que o inconstante escalado caiba todo enrolado na sua mão.
Dizem que saio a ela como saí dela e só me custa que ela adivinhe tão rapidamente o que nem eu imagino que vou pensar.
Penso muitas vezes que o adivinha em mim porque apenas já o pensou nela.
Mas ela diz que não.
Excepto quando pega numa mecha do meu cabelo e tenta, em vão, entrelaçá-lo.
Pega nele como eu imagino que pegou em mim quando era tão pequenina que quase cabia na palma da sua mão.
Agora só caibo nos palmos do seu abraço.
E é por isso que, às vezes, pega no meu cabelo e tenta entrelaçá-lo, em vão. Em vão, como se quase coubesse na palma e eu me agarrasse aos dedos brancos e finos, finos e brancos de puxar para a luz outros que cabem noutras palmas.
E é por isso que sinto o peso de ser tão igual a ela. E ainda é mais por isso que sinto o imenso orgulho ao ouvir o quanto somos a mesma.
E cada vez mais, dizem.»
Fibonacci

quarta-feira, março 21, 2007

«Um sopro mais doce que a esperança»

Lugares comuns

Disseram-me ontem que a morte
é só o lugar comum da vida
Dá lugar à sorte, à fortuna e à traição
Dá a vez ao azar, ao amor de perdição.
Disseram-me que não parecia uma saída
mas um sufoco
Um ardor que arde mais a quem está vivo
que a quem está morto.
Disseram-me para não morrer que a morte mata
Disseram-me os venenos certos, disseram-me a data
Disseram-me as luas e as estrelas para tal
Para morrer sem igual.
Disseram-me a morte leve e a pesada, disseram-me mesmo assim
que é uma fachada
de uma velha casa e poeirenta onde nunca ninguém entrou.
Disseram-me baixinho para não repetir
para não dizer que foi casada
Para não a cansar, para a não dormir.
Disseram-me ainda que a morte menina
(A morte que uns querem, todos temem e ninguêm vê
Essa morte muito maior)
Disseram-me para não falar dela
e não falei.
Disseram-me antes, disseram, jurei, disseram-me segura,
Para não me deixar cair na candura
Da morte vivida,
Da vida doçura,
No amargo fazer nada quando
se podia fazer
No doce ressonar quando
se podia viver.
Fibonacci

sábado, março 17, 2007

Azul

O céu abriu-se ontem. Numa magnanimidade desmedida, o céu abriu as janelas de par a par e deixou entrar os raios azuis e novos do sol, como um grito desmesurado ao Tempo. Abriu-se de uma maneira que não enganou ninguém. Por pouco, lembrou-nos que há mais cores na paleta que não o cinzento. E que o Verão não é uma miragem. Pode exisitir mesmo.
À primeira impressão do calor natural em meses, à primeira visita do criador, ao seu primeiro abraço, estranhei a primeira promessa. Fugi e continuei a estranhar. Porque sempre desejei mas nunca acreditei que o Verão chegasse mesmo. Porque a maior parte das coisas que desejamos muito, não acreditamos que cheguem mesmo. E é isso que nos faz gostar tanto delas. O verdadeiro teste é tê-las na mão e aí ainda ter mais saudades delas do que quando não as temos em nós. O verdadeiro teste é ver o Verão chegar e correr mais para ele do que quando o esperámos no Inverno. E o verdadeiro resultado, o único, é que nos vamos aperceber que chegamos ao Verão e a cor que tanto ansiávamos, tapamo-la com os óculos escuros. E o calor que tanto quisemos, afugentamo-lo com as ventoinhas.
Mas este ano não. Os seus raios azuis e novos prometeram aquela primeira promessa e eu acredito.
Vou correr a sair de casa para morrer de calor.
Vou abrir os olhos para a cor mais escondida,
vou acordar as sestas mais pesadas,
vou adorar o mar gelado e o próprio gelo a derreter.
Vou deixar cair tudo o que em mim que é Inverno para que, mal chegue Agosto, deseje intensamente sentir de novo o calor pequenino das castanhas assadas e de novo ver as folhas a cair vermelhas.
Vermelhas e laranjas porque, apesar de tudo e apesar do Tempo, não vou nunca esquecer o cheiro do Verão.
Fibonacci

quarta-feira, março 14, 2007

Cem Anos de Solidão

«Então deu outro salto para se antecipar às predições e ver a data e as circunstâncias da sua morte. No entanto, antes de chegar ao verso final, já tinha percebido que não sairia nunca desse quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no momento em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo o que neles estava escrito era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a Terra.»
Cem anos de Solidão, Gabriel García Marquez
E se tal estiver previsto e escrito nos pergaminhos indecifráveis? A última corrente de vida que por fim sopra é a esperança da sentença já suportada por outros. Porque se há coisa que se aprende é que o tempo não passa, o tempo arredonda-se um pouco mais, porque ele já é redondo.
Uma intensa sensação de dejá vu. O dejá vu que foi o crime quase perfeito. O dejá vu mais perfeito que esse crime.
Quis quase morrer e vaguear como sombra como as sombras que por lá vagueavam antes mesmo de quase se apagarem. Revoltei-me e descarrilei do comboio dos três mil do massacre da estação. Olhei para aquela que foi quase a minha casa e chorei pelo Santo António escondido e as moedas de ouro, pela descendente que ascendeu ao céu, pelas formigas vermelhas que a corroíam, pelos intermináveis anos de chuva e a miséria da seca. Morri de medo do rabo de porco e arrependi-me pela loucura tão lúcida que se amarrou a uma árvore.
Fechei o livro e a primeira reacção foi de alívio. Pois que não haja mais estirpes assim!
Abri-o outra vez e arrependi-me de tal repúdio à história maior, à síntese mais-que-perfeita do mundo.
Porque também não houve solidão mais sonhada e mais morrida. E para morrer assim, talvez valha viver melhor.
Fibonacci

quarta-feira, março 07, 2007

Ontem

Ontem foi ontem. Inexplicavelmente ontem. E ontem passou sem ninguém se aperceber que era ontem. Eu apercebi-me. Mas só mesmo ao princípio e quase, quase no fim. E ontem, ou melhor, hoje a pensar que era ontem, lembrei-me do outro ontem. Que já foi muito mais ontem do que hoje é. Esse ontem, hoje, é quase amanhã. Não dá nem para disfarçar, pois não?
Ontem, ninguém soube que era ontem. Eu soube. Pela primeira vez, soube. Se calhar, só mesmo eu. Mas eu prefiro pensar tu tens melhor memória e continuo a prefirir pensar que este ontem já passou por ti muitas vezes. Mas se calhar não. Se calhar não passam de preferências minhas.
Ontem nem é assim tão importante. Mas é bonito, um pretexto, uma desculpa para rir. Rir à descarada. E, quando ninguém estiver a ver, sorrir baixinho. Para ninguém mais ouvir. Tu conheces o meu disfarce.
Ontem foi simplesmente ontem. Ininterruptivamente ontem. E ninguém reparou.
Nem tu.

sexta-feira, março 02, 2007

Desta vez

Os dias passam demasiado depressa. O mar aqui mesmo à frente angustia-se com isso mesmo e apressa-se, sempre revoltado com tudo o que não acontece. É como eu. No fundo, somos almas gémeas, eu e o mar.
E vou descobrindo, assim, à beira dele, que mais que doer a saudade do que passou, ou do que podia ter acontecido, dói a saudade do que ainda se poderá passar. Porque o que passou, passou e o que não passou, não passou e já não incomoda mais. Agora o que será, será e ninguém sabe. E isso do princípio da causalidade... Hume tinha razão. É crença.
Mas era tão bom se pudesse acreditar.
(Entra o génio maligno, como que tentando não ser visto)
E por isso perco-me nas mundanices terríveis que me deixam esquecida do resto.
Por isso precisei de voltar aqui, outra vez, como no princípio.
Por isso preciso de fugir de mim outra vez.
Desta vez, numa fuga maravilhosa e esquecida, anamnésica.
Desta vez, sem me contentar com o que tenho.
Desta vez, sem lamúria alguma por gole.
Desta vez, sem dizer adeus.
Desta vez, a beber veneno e a morrer de rir.
Desta vez, nós os dois.
Fibonacci