sábado, junho 30, 2007

Nada

Lúcia lia e gostava. Gostava da carta que ele lhe escreveu. A saboreá-la, pedacinho a pedacinho, leu-a toda, muitas vezes, leu as poucas palavras pequenas. Ele não dizia nada na carta. Nada de novo, nada de velho. Era uma carta oca, daquelas que até deviam fazer barulho, pensava. Mas Lúcia gostava e continuava a ler outra vez a carta, tão insignificante nas suas três páginas.
Lúcia odiava cartas. Cartas lentas, atrasadas, substitutas mal ensaiadas de uma boa conversa. Mas aquela carta, oca e lenta, preenchia-a. E cada vez mais.
Página dois. Continua sem dizer nada. Nem mesmo nas entrelinhas, nada.
Na página três, um início de alguma coisa, mas era fumo sem fogo. Era nada. O mesmo nada que preenchia o vazio daquelas três páginas cheias.
E nem na despedida, nem na assinatura, Lúcia não lia nada de nada. E gostava.
Nunca tinha recebido uma carta assim.
Tão cheia do nada, vazia de olhar, repleta do tudo que um buraco negro suga.
Fibonacci

sexta-feira, junho 29, 2007

A fio

Ninguém percebeu exactamente quando foi que o dia tropeçou e finalmente caiu o negro da noite. A percepção era constantemente enganada, por ali. Quando se ia a ver, já não se via nada, nem se sentia. Porque a noite era escura, densa, pesada e extremamente palpável. Tal como se por existir noite não existisse mais nada e mais nada pudesse ser sentido. E o maior divertimento era estender as mãos para as noites, a fio, e agarrá-las, sentir o gelo do vento arranhar os nós dos dedos, e os nós das mãos e dos braços. Muita gente por ali agarrava a noite. Mas nesse dia, ninguém se apercebeu da sua chegada. Ingratos.
Fibonacci

segunda-feira, junho 25, 2007

Se o nosso Verão breve for venha um Inverno comprido

«Todos os dias do ano têm o seu santo cristão
As noites se não me engano só tem o S. João
Noite curta, grande amor à beira rio nascido
Se o nosso Verão breve for venha um Inverno comprido
Pé de meia, pé de dança
Mão morta à porta não bate
Bailar por gosto não cansa
Morrer de prazer não mata
Trevo das quatro folhinhas
Que dás sorte nesta vida,
Prefiro as ervas daninhas
E aquela que é proibida.
Na noite de S. João perdi o amor que eu tinha
Troquei o céu pelo chão e a brasa pela sardinha
Pé de meia, pé de dança
Manguito e rabo de saia
Como é que um santo criança
Vira a cabeça às catraias?
Traz-me caril, malagueta, cravinho e nós moscada
Faremos uma directa em calda bem temperada
Traz-me erva cidreira, hortelã, tomilho e salsa
Faz-me uma grande fogueira para eu saltar descalça.»

Erva proibida, São João do Porto,
interpretado por Diana Basto e Mário Alves



Era uma vez. Finalmente tenho sono e posso dormir. Finalmente estou cansada e posso parar. Finalmente, o Verão. E mesmo finalmente.
Não sei se da mão morta, não sei se da ceguez temporariamente efémera, não sei se da cerveja que não bebi, nem da meta que corri para não cortar. Não sei. Mas só o facto de saber, já me dá a paz necessária. Para sorrir, para não pensar, porque pensar sempre fez mal.
Agora doem-me as pernas e tenho o orgulho ferido. Os calos nos pés são a única coisa que me lembra os quilómetros percorridos, sempre sem sair do sítio. A sensação cutânea de penas arrancadas às asas é pura alucinação, eu sei. Ainda consigo voar.
Troquei o céu pelo chão. Mas o paraíso subaéreo não me atraía assim tanto. Ainda posso cair mais, mas não tenciono. Agora vou andar em círculos, agora vou fechar os olhos. Rodopiar para sempre no que nunca aconteceu.
Fiz a fogueira e saltei-a. Sinto-me plenamente orgulhosa de mim própria.
Cresci. Uns centímetros. Saiu-me um peso de cima. E veio logo outro, sorrateiro, para não me deixar mais dormir. Mas quem quer dormir? Hoje ninguém dorme. O estado de latência e a apatismo aparente são puras hibernações.
E é claro que me sinto sozinha se fui a única a acordar.
Escrita puramente monocromática. Agora sim desiludi-me.

Fibonacci