terça-feira, julho 31, 2007

Faltas tu

Não consegui fazê-lo sozinha. Quis mostrar que sou alguém mas nem enfrentei os monstros sem ajuda. É só mais um dia mau. Incrivelmente sinto-me inexplicavelmente bem. De um bem maravilhoso e supremo. De um bem que só não é mais mais meu porque faltas tu.
Um outro dia pior caí do meu próprio ego. Fui marcada, desde aí, sou uma raiva docilmente controlada.
Mas preciso de precisar. Preciso do meu tempo e do teu tempo. Eu não gosto só, gosto sozinha. E talvez não queira provar veneno, mas quero morrer de rir.
E então um outro dia melhor vou perceber quem sou, talvez quando descobrir quem és. Entretanto, és só mais um dia mau.
E é fantástica essa definição de bom e mau.
Conheço quem seja péssimo a ser bom.
E já vi a terrível felicidade de se ser mau.
Eu dei
Mas foi para mostrar
Não havendo amor de volta
Nada impede a fonte de secar
Ornatos Violeta, Dia Mau

segunda-feira, julho 23, 2007

Sala de espelhos

'Eu sei que és feliz', disse então. Lúcia assustou-se como se acordasse e inclinou rápida e suavemente o pescoço, espreitando para trás. Tentava vislumbrar a presença de outra pessoa na sala pouco mais que vazia.
'És feliz, tu. Por natureza e omissão.'
Mais tarde Lúcia confessaria que ficou um pouco chocada. A sua natureza irremediável e deliciosamente romântica sempre lhe havia deixado um delicado travo amargo na boca. Sempre a havia obrigado a acreditar que não era ela o mar, só podia tentar imitar a sua voz.
E assim, naquela altura, Lúcia reagiu com o silêncio indignado. Uma indignação que só ele percebeu ser um 'aceito'. Um 'aceito' terrivelmente mal escondido.
Não que Lúcia aceitasse aquela afirmação como aceitava as críticas, porque essas ainda não havia aprendido a aceitar, como nunca de facto conseguiu. Mas antes era um 'aceito' como quem recebe uma notícia, um pouco noite, um pouco alívio.
(...)
De facto foi. Foi feliz. Ali, na sala dos espelhos, sozinha e repetida mil e uma vezes, Lúcia foi feliz
Ali tinha tudo, mesmo que lhe faltasse muita coisa. No fundo, tudo o que faltava, era dela. E o que queria, já lhe pertencia.
Feliz como narcisista que era ou egoísta que queria ser. Ali, sozinha e repetida, só com aquela companhia Lúcia quase fingia que o mundo era perfeito.
E, se acreditasse em coincidências, quase que acreditaria que a felicidade existia.
Fibonacci

domingo, julho 15, 2007

Forças da Natureza

O vazio é a noção mais abastracta que o Homem sonhou. Maior que o medo, mais poderoso que a luz, o nada tão genial e assombroso. (Não fosse ele ser pura e intrinsecamente sonhado.)
Quem sabe o que quer, desilude-se. Quem não sabe nem quer, vai morrendo aos bocadinhos. O vazio não se quer nem se sabe. O vazio receia-se.
E por isso o jogo mais perigoso que o Homem alguma noite sonhou foi o futuro. Foi também o mais bonito. O vazio de querer saber para onde vai sem nunca se preocupar onde está. E só porque quem quer saber demais a vida, morre por agora.
E eu não sei.
Quero querer porque me apavora o vazio. Quero saber para dar uma nova perspectiva às minhas lágrimas. Mas, no fundo, tanto receio que nada me importa.
(...)
Alguém maior disse uma vez que "seguir-te não será morrer".
Por isso eu confio no caminho.
Gosto de saber que, faça o que fizer, vivo porque tu vives. Gosto de saber que, decida o que decidir, és o meu fado. E aconteça o que acontecer, por sempre, teremos a saudade. Por isso é tão sufocante o vazio pior que a indecisão.
Se pudesse realmente escolher, escolhia a aventura.
Mas não posso. Tu não vens.
Fibonacci

quarta-feira, julho 11, 2007

Sinal (ou A Saga do Amor-Perfeito)

Lúcia voltou tarde, já o Sol ia no seu segundo sono. A Lua vinha vindo a crescer a olhos vistos e, nessa noite, vinha também branca, gorda e voluptuosa, como o colo de uma grande e afável matrona, das antigas. Iluminava o trilho que Lúcia percorria descalça. Os sapatos na mão pesavam menos e os pés colavam-se cada vez mais ao chão. Ao íman imenso do núcleo terrestre.
A mensagem do bilhete continuava a pesar na sua lógica imperturbável e na sua mente eternamente satisfeita.
«Marquei-te pelo que és. Amei-te pelo que sou. Por aquilo que sou contigo. Que é o mesmo que sou sozinho, mas sozinho sou mais triste.»
E o passado voltava a fluir na sua memória, tão real como se fosse ontem.
E tinha sido ontem.
Só Lúcia não se apercebeu.
Fibonacci

Prometeste o mundo (Indecisão)

Prometeste o mundo, eu não recebi mais que uma ilha. Contaste-me histórias em que éramos heróis. Ias descobrir Nemésis para mim, dizias que era irmã-gémea do Sol. Planeámos viagens e vidas e ríamos a fugir aos planos. Falaste nos vulcões e fantásticas quedas de água que ias criar para mim. E noutras que já existiam e que eram só de nós dois.
E com uma mão mentiste tudo.
E eu continuo a acreditar cada palavra.
Até que um dia me decida a partir o quebrar da rotina e pôr-te em choque. Mostrar-te que a vida não são dois dias, mas aqueles que nós quisermos.
Fibonacci

segunda-feira, julho 09, 2007

Diário de viagem

Libuse nunca chorou


Libuse nunca chorou. Nunca chorou de dor, amor ou angústia. Nem de saudade, Libuse nunca sentiu ninguém.
Libuse era amarga, semelhante às deusas em tudo. Nas tranças que não tinha, no olhar que não lançava, nas paixões que não vivia, mas recordava. Libuse queria ser sozinha. Libuse era princesa. E à noite, à revelia, sonhava ser rainha, ou pouco mais. Ou mais livre, ou menos presa.
Até então, Libuse nunca tinha amado. Fugia. Mas Libuse, plebeia, por dois segundos morou naquele lugar, nas brandas curvas sinuosas do rio, no fugaz dorso de baleias que nunca viu, mas imaginou. Naqueles dois segundos, Libuse construiu uma cidade só para si, que nunca mais foi sua.
Sua, foi naqueles dois segundos em que pestanejou docemente uma acre lágrima. Água.
Ninguém viu. Só as pedras mentirosas recalcadas o sabem. E nessas, ninguém acredita.
Assim, Libuse, mulher amarga em tudo igual das deusas, manteve para o sempre a sua posição etérea, imortal e terrível.
Libuse nunca chorou. Morreu.
Praga, 5 de Julho de 2007




That would be nice.

Se um dia encontrasse, íamos viver à luz das velas, dançar eternamente despegados um no outro, como nesta noite. (A cara a arder, um formigueiro estranhos nos dedos que não querem segurar a caneta na mão esquerda.) Íamos jantar para sempre a música e calarmo-nos no grito infundo que criámos.
Se um dia encontrasse o livro dourado. E o frio do vento gelado lá fora ia esquecer-nos de tudo o que já imaginámos. Bastava fugir. Bastava querer. Fechar os olhos, abandonados ao ritmo do violão, agarrados pelas mãos e pelos olhos.
Eternamente à espera.
Eternamente irreconciliáveis.
Praga, 7 de Julho de 2007



Fibonacci

terça-feira, julho 03, 2007

Porque é que eu já não acredito na felicidade?

Mistérios

Odeio a insatisfação porque 90% do meu corpo é feita disso e de água.
No entanto, sou sólida. Não sou líquida.
E este é, para mim, o maior mistério da Mãe-Natureza.
Gostava de me sentir parada, quieta, celestialmente imóvel. Mas sou como a Alice, tenho de correr para ficar no mesmo sitio.
Um dia cansei-me da corrida na passadeira. Resolvi saltar para andar para a frente (só aos saltos, Kuhn!). Mas acabei de tropeçar e dói-me o pé. E é o sarcasmo dessa mão gentilmente estendida para me ajudar a levantar que me rasga a alma. De cima a baixo.
Fibonacci

segunda-feira, julho 02, 2007

Uma nota só

Eis aqui este sambinha
Feito numa nota só
Outras notas vão entrar
Mas a base é uma só
Esta outra é consequência
Do que acabo de dizer
Como eu sou a consequência
Inevitável de você
Quanta gente existe por aí
Que fala tanto e não diz nada
Ou quase nada
Já me utilizei de toda a escala
E no final não sobrou nada
Não deu em nada
E voltei prá minha nota
Como eu volto prá você
Vou cantar com a minha nota
Como eu gosto de você
E quem quer todas as notas
Ré, mi, fá, sol, lá, si, dó
Fica sempre sem nenhuma
Fique numa nota só.
Tom Jobim
Toda a gente sabe que o passado está à esquerda e o futuro à direita. Toda a gente sabe que não há circunferências perfeitas na Natureza. Nem triângulos. Nem nada mesmo que se assemelhe a tal. E toda a gente sabe que isto é contraditório. Toda a gente sabe que, se não há nada perfeito e à nossa escala, muito menos perfeito será o tempo. E muito menos o será assim, escalado e igualmente repartido por tudo e todos. E se o futuro de repente virasse à esquerda e nos aparecesse aí, íamos ter tanto medo como se víssemos um tronco de árvore como uma curva celeste e endiabrada perfeitamente delienada, com todos os pontos do seu limite equidistantes ao centro. Um centro perfeito e milimétrico.
Toda a gente tem noção que isto dos segundos, minutos e horas fomos nós que inventámos em cima do joelho. E que nunca um minuto irá ter sessenta segundos. E que nunca um dia teve vinte e quatro horas. Estes últimos tiveram, no mínimo, cinquenta e duas. Por isso não quero cair no erro de cair no tempo todo do mundo. Nem em todas as notas. Quero uma. Quero-a e quero agora. Quero o próprio agora. O presente que nem é passado nem futuro nem nunca vai ser nada disso porque simplesmente não está na natureza dele.
Fibonacci