domingo, outubro 29, 2006

Cosi fan tutte

Sei que peca por excesso e por defeito, sei que é mau, sei-o todo. Mas por favor abandona-me por um pouco, orgulho...
Tu também, Pessoa, Ivanhoe!, abandona-me ele, ela, nome estranho.
Hoje está um bafo que apetece. Hoje sabe-me a boca a estufa e cheiro de estio. Hoje apetece deliciar-me na 1ª pessoa (apetecia-me ver que leste e comentaste o que escrevi...); hoje está um ar que apetece cair na falta de gravidade apenas por um bocadinho não literário. Apetecia-me dormir, acordar e ver que no Mundo Novo estavas sempre aqui. Tantas e tantas vezes que até me cansei de ti e tu de mim. Tantas e tantas vezes que ver-te chegar já não era surpresa. Tantas e tantas vezes que eu enjoei do que vestias e tu do meu corte de cabelo. Tantas e tantas vezes que tu perdeste todo o interesse em mim e eu pensei muito mais noutras pessoas. Mas tantas e tantas vezes antes de essas vezes terem chegado nós estivemos. E só isso, por ora, me interessava.
Não vaciles, não. Então não sabes como sou? Não me acredito em nada do que disse. Mas também por alguma coisa gosto tanto deste nosso Velho Mundo.
Tu não?
Fibonacci

quarta-feira, outubro 25, 2006

Uma outra Malinche

– Era quem matasse o tempo! – vociferou Malinali. Voz e punhos cerrados. Sobrolho e dedos carregados. Os olhos, muito verdes como os da mãe, faiscavam laranja e vermelho como o pôr-do-sol na sua terra-natal.

«Não podes matar o tempo, Malinali, não podes... E mesmo que pudesses de nada te servia. O tempo arrancou-te aquilo que és, eu sei. Mas o vazio nada te pode trazer.» Cortés pensava tudo isto no seu olhar tão doce, que Malinali não precisou que falasse. Como aliás nunca tinha acontecido.
Tinham crescido juntos e desde que se haviam habituado a gatinhar e comunicar sem precisar de palavras, nunca mais as usaram entre si.

Cortés era branco. Muito branco e muito loiro. A única coisa que lembrava o seu pai eram os olhos castanhos, muito castanhos e muito fundos, como chocolate quente. Malinali era negra e a única coisa que lembrava a sua mãe eram os seus olhos verdes, verdes como a água e como a terra. De resto, todos os seus movimentos, olhares, costumes e todo o seu coração espelhavam seu pai, sua terra, sua avó.

– O tempo levou-te, Malinali, mas não arrancou o que em ti bate.

«Como te podes esquecer? Como? Não te lembras, agora? Porque não te lembras?»

– Era quem o matasse, Cortés... – mas Malinali conseguiu então ouvir o que ele não queria. E, pela primeira vez fazia muito tempo, sorriu.
Sussurrou agora.
– Do tempo, de bom só a saudade. E mesmo essa, peço-te mata-a!

Os lábios de Cortés, entreabertos, cortejavam os seus, ela via. E deixavam antever um leve travo a canela e noz moscada. Como sempre, deleitavam-se a esquecer as palavras.

Fibonacci

Personagens e título inspirados
no livro «Malinche» de Laura Esquivel

terça-feira, outubro 24, 2006

Constelações


A grande árvore centenária ainda se mantinha de pé. Ladeada por muitas outras ervas colossais, nascidas nos tempos de outros deuses, mantinha-se firme na sua velhice e solidão, eternamente abraçada à Mãe-Terra.

Os olhos escuros do centauro pousaram nela. Todo o vale, do cimo daquele monte, lhe pareceu muito pequenino na sua vastidão imensa e verde. O vento zumbia nos seus ouvidos já marcados pelas durezas das guerras que havia travado. Morto pelo descanso do pós-batalha, derrotado nas cerimónias de honra e ócio, ambicionava há muito partir de novo. O arco e a flecha a tiracolo suspiravam por novas aventuras, sim. No entanto, o seu coração semi-humano não o deixava partir em paz. Eram aqueles olhos…
Mwadii observava ao longe o robusto guerreiro. Como queria, também ela, fugir daquela calma asfixiante! Como queria morrer na ébria confusão do campo de batalha, renascendo então das cinzas ainda quentes, no colo da morte menina. Queria voar. Queria agarrar o tempo e galopar à frente dele, fazendo-o engolir a poeira e a vingança dos anos que passou algemada à sua tribo e àquele odioso Vale, vendo o belicoso centauro partir. Desta vez ele não iria. Como se podia atrever a querer mantê-la segura na sufocação daquela paz? Aquele enfatuado, aquele arrogante! Como queria estar perto dele... Não! Abanou a cabeça e todo corpo numa rápida convulsão arrepiada para se esvaziar deste último pensamento intolerável.
O vento e os lagartos que a ouviam murmurar este discurso, também meneavam a cabeça, mas desaprovadoramente. Nem queriam acreditar. Aquela não era a Mwadii que haviam visto crescer por entre o calor abafado das ervas e os sussurros gelados da Noite. Não podiam acreditar no ódio quente e rouco que brotava dos seus lábios. Preferiam acreditar na brisa, que um dia por lá passara e lhes sussurrara, como um segredo, que aquele ódio ao centauro nada mais era que amor.

Fibonacci

Imagem e imaginação
cedidas por Arlequim.
Obrigada.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Chuva

A noite passara como ele passava todos os dias pela Rua de Cedofeita. A noite passara no seu passo apressado, com aquele olhar concentrado, onde os olhos semi-cerrados tentavam fugir, arrastando o corpo atrás de si. A noite passara sem eu dar por ela, e eu nem tentei segurar o tempo, colar-me a ele, como fazia. Não. A noite passara como se nem existisse.
E lá fora, o tempo gritava. Arrancavam-lhe um dente podre sem anestesia e ele queria berrar toda a dor, queria exorcisá-la para sempre do seu corpo. O tempo chorava lá fora e toda a baba e angústia pareciam domar as árvores que tremiam (tremiam e soluçavam como varas verdes que, agora mais que nunca, preferiam não ser!). Lá fora o tempo gritava bem alto tentando acordar-me. Mas a noite embalou-me demais e não o ouvi.
E foi então que me apercebi da sua presença. Daquele pequeno lamento. Não, não era um lamento. Era uma música. (Música tão baixinho, àquela hora?) Uma benção, talvez...
A chuva caía mas não era daquelas que lembravam as tristezas da noite anterior. Não. Aquela chuva lembrava gaivotas, mar, nevoeiro, coisas boas, gelados em dias frios de Verão. Lembrava o medo que os gauleses tinham de que o céu lhes caísse na cabeça, lembrava pedacinhos de céu a cair na minha cara, nas minhas mãos, nas palmas das minhas mãos como conchas, tentando levar para casa, na pele, um presente das nuvens.
Aquela chuva segredou-me baixinho, para nunca me esquecer. Rodeou-me e apenas me sussurrou "Como é bom sonhar de manhã, ainda debaixo de trovoada!" E eu não disse mais nada, com medo que tu desaparecesses.
Fibonacci

domingo, outubro 15, 2006

D. Maria e as 15 Palavras

As ruas iluminadas saudavam o seu andar pachorrento, de passos curtos e abafados, sorridentes de tanta saudade. Tinha iniciado aquela viagem, fazia nesse dia, 82 anos. E que viagem!, pensava.
Tinha uns olhos bonitos, D. Maria, eternamente sorridentes no seu brilho-chocolate, mesmo quando as cataratas ameaçavam já a sua liberdade. Havia sido com eles que D. Maria, no fulgor da sua ilusão (como gostava de chamar à juventude!), tinha presenciado o desvendar do mito, da Noite e do céu. D. Maria parou. E ali, naquela rua, lembrou-se. O calor abrasivo da eira, o céu de estrelas tão desenhado. Enfim... A sua crença.
Já lá iam uns sessenta e cinco anos...

A Mãe-Terra anunciava no seu vermelho-fogoso a primeira noite de Verão mas, abraçada à Noite, escondia-o no amarelo-suave em que a Lua, sua oriunda, se deleitava. Maria gostava correr para a eira, todas as noites de Verão e aí deitar-se a falar com a Terra, as cores, naquela cirurgia do solo, que todos os anos se regenerava para que o Homem pudesse, mais uma vez, cortá-lo e arranhá-lo, para se tornar uno com ele, num agradecimento profundo à Água, à Terra e ao Sol.
E foi então, naquele divertimento de acção de graças, numa gargalhada curta de Vida, cheia de nada e de verdade, foi então que viu o céu. Rompendo-se em dois, deixou cair a sua bênção, água que correria para sempre no rio que ali dormia perto. E ali Maria compreendeu aquele ciclo, a beleza do “bis!” que a natureza gritava todos os anos.

D. Maria acordou das suas recordações com as correrias de umas crianças que, de novo naquele primeiro dia de Verão, agradeciam àquela bola, não à Terra, que os fazia gritar “Golo!” no calor contente das férias. D. Maria sorriu. Distinguira perfeitamente a voz de Artur, seu neto. Sim. Ela sabia que aquela viagem ainda valia a pena.

Fibonacci

sábado, outubro 14, 2006

Pós-Fogo

Deixei-me voar, eu sei. Voei um pouco demais. Agora que relanço o olhar do verde limão ao horizonte e vejo o reflexo dos monstros no rio, agora percebo.
Quantas palavras!
Repito para mim mesma, para nunca me esquecer. Repito que as palavras que voam não nos deixam aterrar. E agora, aterrada, caída na margem direita do rio, revejo a avionete em cinzas, lembradas ainda do calor que foram no repasto da noite anterior. Naquela calma de quem mais nada teme, até poderia ser contente. (Arribei às docas do pânico no fogo, porque haveria de, agora, não querer encarar a solidão do rio, à minha esquerda, ou da selva que me cuspiu e me olha feroz?)
Olhava a terra, a querer renascer um pouco mais verde. Poderia dizer que, na calma do que passou, me atrevia a me pensar feliz.
Mas há caminho.
E, sim, tenho um outro medo.
Tu viste o fundo do poço quando eu só olhava o meu reflexo nele, agora que quero ser a água, corro o risco de afundar.
Se outros perguntaram porquê o nome daquela rosa, eu só queria saber porquê o teu nome. Esse nome. Essa coisa, palavra e som que te agarra.
Quando apenas se resume a um pequeno passo para dizeres quem és.
Fibonacci

sexta-feira, outubro 13, 2006

Adamastor

Naqueles dias de que lembro, havia uma certa sorte. Uma sorte danada, um raio sem escolha, um escolho contente. Um delírio, Adamastor!
E ai de quem a visse, que ela era cega. E ela dava voltas, naqueles dias de que me lembro, porque não tinha onde parar.
Mas, naqueles tempos sem dias, nada foi acaso, jogo, incerteza. E a meta de todos os Homens e animais tornou-se a procura. Mas só a sorte, danada!, era a achada...
Eu vendi a metade pelo terço, rosários por carvão. Num quarto de casa que o botão não ocupa e o sorriso não alcança. Sim. Foi nessa dança, naqueles dias sem tempos e tempos sem dias.
Eu não parei. Não ia olhar para trás. Não ia ser sal.
Renunciava a todo mal!
Agora tenho o medo de, na confusão do atalho, (um trabalho que não é teu), te percas, Romeu! Metade que completa.
- Hiberna, Verdade, que há-de chegar a tua razão quando o coração pressentir a luz da Noite por um só olhar.
E eu só quero cumprir o destino. E estou tão bem assim. Tu é que sabias, como sempre... Matar as saudades.
Fibonacci

terça-feira, outubro 10, 2006

Sintomas

«Síndrome, alma, recato, maravilha, tonalidade, imortalidade, pesticidas, romanticidas!, metáfora, anáfora e ana-crusa.
(...)

Podia continuar. Mas antes parar que aquela Palavra entendeu aparecer e já aqui chegou.
Sim. Saudade.
Saudade vem do latim solitas, a solidão. Mas nós rodopiamos tanto à sua volta que ela já se perdeu na décima segunda onda. (...)
Nunca nada se viu como essa Palavra Saudade. É uma solidão doce, com um gosto a amores esquecidos pelo ar e pela lua. É uma solidão simples. Uma simples solidão por apenas faltar alguém. E esse espaço é uma ébria melancolia sóbria. Um desamor correspondido.
E eu podia contar-te tantas histórias da Palavra Saudade! Um dia fugiu, tornou-se música.
Nasceu o Fado.»
Fibonacci

Texto redigido
aquando do trabalho
«A minha palavra preferida»
para a disciplina de
Língua Portuguesa

sexta-feira, outubro 06, 2006

Passo double

Tenho a certeza que daria certo. Sim, tenho a certeza. E eu ia contar-te essa história mil vezes e outras mil e mais umas sem conta. Mostrava-te os meus rascunhos, como quem mostra estrelas. Podia apresentar-te às minhas coisas, como quem aponta constelações numa noite de Verão. E eu ia...
Mas tu, calado, calas-me. Dizes que não. Danças o teu pé esquerdo como se fosse o meu e num tango desenfreado tu falas. Pelas mãos, pelos olhos, por todos os teus poros a brotar água tu falas.
O foco cai sobre ti e eu corro a levantar o pano. Escondo-me do teu solo. Só teu. Porque só quando tu falas ou sorris é que o teu mundo é meu. Mas a música sussurra mais alto que o meu bater descompassado e desafinado a latejar nos ouvidos. E pára. A música pára e aquela força mais forte que a gravidade puxa-me e empurra-me e eu já não posso fazer nada.
Passo double.

Oh sim! Tens toda a razão.
Fibonacci

domingo, outubro 01, 2006

Parte III (Terceiro acto)

Agora era o mar que ali encontrava a paz eterna.
A manhã e a maré subiam e o sol impunha agora a sua presença. Aquecia as algas e o sal. Aquecia a vila que ardia e fervilhava no mercado e que, nas praças pachorrentas, se deitava a descansar. O burburinho do mar sussurrava no fundo do canto dos encontros.
Quando saiu, Marina cumprimentou a praia ao de longe, levantou-lhe o chapéu como velhas conhecidas. Depois, sorriu ao sol desculpando o chapéu - não era nada contra ele!, ele que não levasse a mal. Enquanto se dirigia ao mercado, observava as ruas e as pedras, tão pretas e quentes nos seus pés quase descalços, ria-se às paredes caiadas e aos vendedores de refrescos e gelados. Tudo naquela manhã lembrava o mar e, no entanto, ele parecia esquecido pelas pessoas, pelas ruas e pelas pedras. Mas ali continuava, espelhado pela água das fontes, pelas mãos das vendedeiras, nos olhos de Marina e no seu nome... Especialmente nos seus olhos. Nos seus olhos negros de chocolate. Nos seus olhos que um dia haviam testemunhado o mais sagrado dos rituais da água. Nos seus olhos em que um dia o mar se havia perdido.
Perdida também nos seus próprios lugares, olhou aquele horizonte cor-de-céu como se o respirasse pela última vez. Expirou-o então, como quem se purifica do ar, do chão, do tecto de poeiras que, por agora, não sentia mas que anunciavam a chegada da estrada que daí a uns dias a levaria para longe da sua única casa.
(Continua tu. Querias saber o fim. Não sei se ainda queres. Mas, assim, pode ser que lá chegues primeiro que eu.)
Fibonacci

«Nas manhãs de Itapuã que o vento varre
Os coqueiros já conhecem as canções
Repetidas ou
Repentinas vêm
Consolar o meu coração
As vontades vêm
As saudades vão
Amanhece mais um verão


No calor do sol o céu da boca salga
E o mar na alma acalma o caminhar
Pra que haja areia sal e água e alga
As ondas
Não voltam


Cada dia uma nova eternidade
Para sempre aquela pedra roncará
A aurora se transforma em fim de tarde
De novo
De novo»

Arnaldo Antunes