domingo, outubro 29, 2006
Cosi fan tutte
quarta-feira, outubro 25, 2006
Uma outra Malinche
– Era quem matasse o tempo! – vociferou Malinali. Voz e punhos cerrados. Sobrolho e dedos carregados. Os olhos, muito verdes como os da mãe, faiscavam laranja e vermelho como o pôr-do-sol na sua terra-natal.
«Não podes matar o tempo, Malinali, não podes... E mesmo que pudesses de nada te servia. O tempo arrancou-te aquilo que és, eu sei. Mas o vazio nada te pode trazer.» Cortés pensava tudo isto no seu olhar tão doce, que Malinali não precisou que falasse. Como aliás nunca tinha acontecido.
Tinham crescido juntos e desde que se haviam habituado a gatinhar e comunicar sem precisar de palavras, nunca mais as usaram entre si.
Cortés era branco. Muito branco e muito loiro. A única coisa que lembrava o seu pai eram os olhos castanhos, muito castanhos e muito fundos, como chocolate quente. Malinali era negra e a única coisa que lembrava a sua mãe eram os seus olhos verdes, verdes como a água e como a terra. De resto, todos os seus movimentos, olhares, costumes e todo o seu coração espelhavam seu pai, sua terra, sua avó.
– O tempo levou-te, Malinali, mas não arrancou o que em ti bate.
«Como te podes esquecer? Como? Não te lembras, agora? Porque não te lembras?»
– Era quem o matasse, Cortés... – mas Malinali conseguiu então ouvir o que ele não queria. E, pela primeira vez fazia muito tempo, sorriu.
Sussurrou agora.
– Do tempo, de bom só a saudade. E mesmo essa, peço-te mata-a!
Os lábios de Cortés, entreabertos, cortejavam os seus, ela via. E deixavam antever um leve travo a canela e noz moscada. Como sempre, deleitavam-se a esquecer as palavras.
Fibonacci
Personagens e título inspirados
no livro «Malinche» de Laura Esquivel
terça-feira, outubro 24, 2006
Constelações
A grande árvore centenária ainda se mantinha de pé. Ladeada por muitas outras ervas colossais, nascidas nos tempos de outros deuses, mantinha-se firme na sua velhice e solidão, eternamente abraçada à Mãe-Terra.
Os olhos escuros do centauro pousaram nela. Todo o vale, do cimo daquele monte, lhe pareceu muito pequenino na sua vastidão imensa e verde. O vento zumbia nos seus ouvidos já marcados pelas durezas das guerras que havia travado. Morto pelo descanso do pós-batalha, derrotado nas cerimónias de honra e ócio, ambicionava há muito partir de novo. O arco e a flecha a tiracolo suspiravam por novas aventuras, sim. No entanto, o seu coração semi-humano não o deixava partir em paz. Eram aqueles olhos…
Mwadii observava ao longe o robusto guerreiro. Como queria, também ela, fugir daquela calma asfixiante! Como queria morrer na ébria confusão do campo de batalha, renascendo então das cinzas ainda quentes, no colo da morte menina. Queria voar. Queria agarrar o tempo e galopar à frente dele, fazendo-o engolir a poeira e a vingança dos anos que passou algemada à sua tribo e àquele odioso Vale, vendo o belicoso centauro partir. Desta vez ele não iria. Como se podia atrever a querer mantê-la segura na sufocação daquela paz? Aquele enfatuado, aquele arrogante! Como queria estar perto dele... Não! Abanou a cabeça e todo corpo numa rápida convulsão arrepiada para se esvaziar deste último pensamento intolerável.
O vento e os lagartos que a ouviam murmurar este discurso, também meneavam a cabeça, mas desaprovadoramente. Nem queriam acreditar. Aquela não era a Mwadii que haviam visto crescer por entre o calor abafado das ervas e os sussurros gelados da Noite. Não podiam acreditar no ódio quente e rouco que brotava dos seus lábios. Preferiam acreditar na brisa, que um dia por lá passara e lhes sussurrara, como um segredo, que aquele ódio ao centauro nada mais era que amor.
Fibonacci
Imagem e imaginaçãoquarta-feira, outubro 18, 2006
Chuva
domingo, outubro 15, 2006
D. Maria e as 15 Palavras
As ruas iluminadas saudavam o seu andar pachorrento, de passos curtos e abafados, sorridentes de tanta saudade. Tinha iniciado aquela viagem, fazia nesse dia, 82 anos. E que viagem!, pensava.
Tinha uns olhos bonitos, D. Maria, eternamente sorridentes no seu brilho-chocolate, mesmo quando as cataratas ameaçavam já a sua liberdade. Havia sido com eles que D. Maria, no fulgor da sua ilusão (como gostava de chamar à juventude!), tinha presenciado o desvendar do mito, da Noite e do céu. D. Maria parou. E ali, naquela rua, lembrou-se. O calor abrasivo da eira, o céu de estrelas tão desenhado. Enfim... A sua crença.
Já lá iam uns sessenta e cinco anos...
A Mãe-Terra anunciava no seu vermelho-fogoso a primeira noite de Verão mas, abraçada à Noite, escondia-o no amarelo-suave em que a Lua, sua oriunda, se deleitava. Maria gostava correr para a eira, todas as noites de Verão e aí deitar-se a falar com a Terra, as cores, naquela cirurgia do solo, que todos os anos se regenerava para que o Homem pudesse, mais uma vez, cortá-lo e arranhá-lo, para se tornar uno com ele, num agradecimento profundo à Água, à Terra e ao Sol.
E foi então, naquele divertimento de acção de graças, numa gargalhada curta de Vida, cheia de nada e de verdade, foi então que viu o céu. Rompendo-se em dois, deixou cair a sua bênção, água que correria para sempre no rio que ali dormia perto. E ali Maria compreendeu aquele ciclo, a beleza do “bis!” que a natureza gritava todos os anos.
D. Maria acordou das suas recordações com as correrias de umas crianças que, de novo naquele primeiro dia de Verão, agradeciam àquela bola, não à Terra, que os fazia gritar “Golo!” no calor contente das férias. D. Maria sorriu. Distinguira perfeitamente a voz de Artur, seu neto. Sim. Ela sabia que aquela viagem ainda valia a pena.
Fibonaccisábado, outubro 14, 2006
Pós-Fogo
Olhava a terra, a querer renascer um pouco mais verde. Poderia dizer que, na calma do que passou, me atrevia a me pensar feliz.
Mas há caminho.
Tu viste o fundo do poço quando eu só olhava o meu reflexo nele, agora que quero ser a água, corro o risco de afundar.
sexta-feira, outubro 13, 2006
Adamastor
terça-feira, outubro 10, 2006
Sintomas
Texto redigido
aquando do trabalho
«A minha palavra preferida»
para a disciplina de
Língua Portuguesa
sexta-feira, outubro 06, 2006
Passo double
domingo, outubro 01, 2006
Parte III (Terceiro acto)
«Nas manhãs de Itapuã que o vento varre
Os coqueiros já conhecem as canções
Repetidas ou
Repentinas vêm
Consolar o meu coração
As vontades vêm
As saudades vão
Amanhece mais um verão
No calor do sol o céu da boca salga
E o mar na alma acalma o caminhar
Pra que haja areia sal e água e alga
As ondas
Não voltam
Cada dia uma nova eternidade
Para sempre aquela pedra roncará
A aurora se transforma em fim de tarde
De novo
De novo»Arnaldo Antunes