quarta-feira, outubro 25, 2006

Uma outra Malinche

– Era quem matasse o tempo! – vociferou Malinali. Voz e punhos cerrados. Sobrolho e dedos carregados. Os olhos, muito verdes como os da mãe, faiscavam laranja e vermelho como o pôr-do-sol na sua terra-natal.

«Não podes matar o tempo, Malinali, não podes... E mesmo que pudesses de nada te servia. O tempo arrancou-te aquilo que és, eu sei. Mas o vazio nada te pode trazer.» Cortés pensava tudo isto no seu olhar tão doce, que Malinali não precisou que falasse. Como aliás nunca tinha acontecido.
Tinham crescido juntos e desde que se haviam habituado a gatinhar e comunicar sem precisar de palavras, nunca mais as usaram entre si.

Cortés era branco. Muito branco e muito loiro. A única coisa que lembrava o seu pai eram os olhos castanhos, muito castanhos e muito fundos, como chocolate quente. Malinali era negra e a única coisa que lembrava a sua mãe eram os seus olhos verdes, verdes como a água e como a terra. De resto, todos os seus movimentos, olhares, costumes e todo o seu coração espelhavam seu pai, sua terra, sua avó.

– O tempo levou-te, Malinali, mas não arrancou o que em ti bate.

«Como te podes esquecer? Como? Não te lembras, agora? Porque não te lembras?»

– Era quem o matasse, Cortés... – mas Malinali conseguiu então ouvir o que ele não queria. E, pela primeira vez fazia muito tempo, sorriu.
Sussurrou agora.
– Do tempo, de bom só a saudade. E mesmo essa, peço-te mata-a!

Os lábios de Cortés, entreabertos, cortejavam os seus, ela via. E deixavam antever um leve travo a canela e noz moscada. Como sempre, deleitavam-se a esquecer as palavras.

Fibonacci

Personagens e título inspirados
no livro «Malinche» de Laura Esquivel

1 comentário:

Anónimo disse...

– Do tempo, de bom só a saudade. E mesmo essa, peço-te mata-a!

(tu sentes e escreves, eu leio e percebo - uma sintonia inquebrável :) )