As ruas iluminadas saudavam o seu andar pachorrento, de passos curtos e abafados, sorridentes de tanta saudade. Tinha iniciado aquela viagem, fazia nesse dia, 82 anos. E que viagem!, pensava.
Tinha uns olhos bonitos, D. Maria, eternamente sorridentes no seu brilho-chocolate, mesmo quando as cataratas ameaçavam já a sua liberdade. Havia sido com eles que D. Maria, no fulgor da sua ilusão (como gostava de chamar à juventude!), tinha presenciado o desvendar do mito, da Noite e do céu. D. Maria parou. E ali, naquela rua, lembrou-se. O calor abrasivo da eira, o céu de estrelas tão desenhado. Enfim... A sua crença.
Já lá iam uns sessenta e cinco anos...
A Mãe-Terra anunciava no seu vermelho-fogoso a primeira noite de Verão mas, abraçada à Noite, escondia-o no amarelo-suave em que a Lua, sua oriunda, se deleitava. Maria gostava correr para a eira, todas as noites de Verão e aí deitar-se a falar com a Terra, as cores, naquela cirurgia do solo, que todos os anos se regenerava para que o Homem pudesse, mais uma vez, cortá-lo e arranhá-lo, para se tornar uno com ele, num agradecimento profundo à Água, à Terra e ao Sol.
E foi então, naquele divertimento de acção de graças, numa gargalhada curta de Vida, cheia de nada e de verdade, foi então que viu o céu. Rompendo-se em dois, deixou cair a sua bênção, água que correria para sempre no rio que ali dormia perto. E ali Maria compreendeu aquele ciclo, a beleza do “bis!” que a natureza gritava todos os anos.
D. Maria acordou das suas recordações com as correrias de umas crianças que, de novo naquele primeiro dia de Verão, agradeciam àquela bola, não à Terra, que os fazia gritar “Golo!” no calor contente das férias. D. Maria sorriu. Distinguira perfeitamente a voz de Artur, seu neto. Sim. Ela sabia que aquela viagem ainda valia a pena.
Fibonacci
3 comentários:
Eterna viajante de sonhos. :)
nos sonhos realmente felizes :)
sentimentos verdadeiros + palavras certas no momento certo + amor à escrita = maravilha dum texto escrito por fibonacci
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