domingo, outubro 01, 2006

Parte III (Terceiro acto)

Agora era o mar que ali encontrava a paz eterna.
A manhã e a maré subiam e o sol impunha agora a sua presença. Aquecia as algas e o sal. Aquecia a vila que ardia e fervilhava no mercado e que, nas praças pachorrentas, se deitava a descansar. O burburinho do mar sussurrava no fundo do canto dos encontros.
Quando saiu, Marina cumprimentou a praia ao de longe, levantou-lhe o chapéu como velhas conhecidas. Depois, sorriu ao sol desculpando o chapéu - não era nada contra ele!, ele que não levasse a mal. Enquanto se dirigia ao mercado, observava as ruas e as pedras, tão pretas e quentes nos seus pés quase descalços, ria-se às paredes caiadas e aos vendedores de refrescos e gelados. Tudo naquela manhã lembrava o mar e, no entanto, ele parecia esquecido pelas pessoas, pelas ruas e pelas pedras. Mas ali continuava, espelhado pela água das fontes, pelas mãos das vendedeiras, nos olhos de Marina e no seu nome... Especialmente nos seus olhos. Nos seus olhos negros de chocolate. Nos seus olhos que um dia haviam testemunhado o mais sagrado dos rituais da água. Nos seus olhos em que um dia o mar se havia perdido.
Perdida também nos seus próprios lugares, olhou aquele horizonte cor-de-céu como se o respirasse pela última vez. Expirou-o então, como quem se purifica do ar, do chão, do tecto de poeiras que, por agora, não sentia mas que anunciavam a chegada da estrada que daí a uns dias a levaria para longe da sua única casa.
(Continua tu. Querias saber o fim. Não sei se ainda queres. Mas, assim, pode ser que lá chegues primeiro que eu.)
Fibonacci

«Nas manhãs de Itapuã que o vento varre
Os coqueiros já conhecem as canções
Repetidas ou
Repentinas vêm
Consolar o meu coração
As vontades vêm
As saudades vão
Amanhece mais um verão


No calor do sol o céu da boca salga
E o mar na alma acalma o caminhar
Pra que haja areia sal e água e alga
As ondas
Não voltam


Cada dia uma nova eternidade
Para sempre aquela pedra roncará
A aurora se transforma em fim de tarde
De novo
De novo»

Arnaldo Antunes

1 comentário:

artur disse...

maginificamente genial este 'nosso', sem abusar, querido mestre. relembro os serões e as discussões sobre as letras sintilantes... relembro-me feliz. relembro-te feliz.