quinta-feira, junho 29, 2006

Parte II

O dia amanheceu cinzento e sem pressa e espreguiçou-se lentamente na ronca que guiava os pescadores. Ela espreguiçou-se também. Os fantasmas laranja e cor-de-rosa da noite anterior haviam deixado um leve travo de licor, memórias e fantasias na sua boca. A janela aberta não era mais que um quadro. O azul esbatido do mar perdia-se nos olhos dela. Já era corrido o tempo que ela se havia perdido no mar, no luar e na sua junção perfeita e eterna. Agora era o mar que ali encontrava a paz eterna.
(Continuei porque pediste. Mas não te conto o fim da história. A maré ainda vai vaza.)
Fibonacci

quarta-feira, junho 28, 2006

E agradeceu-o.

Com um sopro apagou a vela. Agora sim. Gostava do escuro e das formas contorcidas que a luz mal soldada da vela havia desenhado na sua parede. Olhou para o lado, ainda mal adormecida e, sem querer, sorriu. O Verão tinha coisas destas. Especialmente à noite. Deixava-a melancólica e sorridente, com saudades da lua e do seu reflexo na água. E isso fazia lembrar aquela noite...
O mar estava límpido e as estrelas indicavam-lhe o norte. Observava o seu reflexo na água, iluminada pelo luar mais bonito daquele ano. De repente, sentiu a sua mão no seu ombro. Ele nada disse. Ela olhou o seu reflexo e pensou que nada daquilo fazia sentido. Não podia ser ele a estar ali. Nem ela. Então, pela primeira vez, os seus olhares encontraram-se.
Eles já se conheciam, sim. Já muito tinham falado, rido e chorado. Mas os seus olhos nunca tinham mergulhado nos dele. Ele nunca tinha deixado. Agora, agora que o seu riso de criança já não impedia o seu olhar de sentir, agora ela podia ver.
Sim. Esperava aquilo. Aquele olhar. Finalmente um olhar de quem vê e compreende, não de quem foge do luar.
E, num movimento súbito, acompanhado pelo ruído de uma onda frágil que se esbatia nos seus pés nus, abraçaram-se. E elevaram-se a um estado no qual a matéria não mais se podia detriorar. Uma amizade. Selada naquele mar.
Agora, ali lembrada, pensou no beijo que tanto esperara mas que nunca havia chegado. E agradeceu a sua ausência. Agradeceu o abraço e a amizade. Agradeceu-o num sorriso dormido sem limites que apenas as gaivotas interromperam. E elas apenas anunciavam a madrugada.
Fibonacci

sexta-feira, junho 23, 2006

É nosso S. João. Isso ninguém nos tira.

Dança comigo
Apaga a fogueira.
Não há perigo de te queimares
Vamos subir pelos ares
Como um balão de São João.
E se o santo não nos acudir
Por enquanto podemos fugir.
Mal o sol romper
Rompemos também,
Não vamos além do que deve ser.
Amor a fingir só para aquecer
Ou para esquecer.

São João, bom pastor,
Quem amar em vão
Amará melhor, São João?
Dá-me um banho de amor
Uma paixão nova
De caixão à cova.

Dança comigo
Eu pés e tu passos.
Último abrigo serão nossos braços.
Vamos arder pelas ruas
E derreter nas setes luas.
E se o pastor não nos vigiar
Pecaremos por excesso e defeito.
Por cio e fastio
Sem culpa nem jeito
E apostaremos neste duro par.
Amor a valer só para aquecer
Ou envelhecer.

São João, bom pastor,
Quem amar em vão
Amará melhor, São João?
Dá-me um banho de amor
Uma paixão nova
De caixão à cova.
Junta Corações
«Estás apaixonada?» - perguntou-lhe com aqueles olhos de quem tudo sabe sem saber que já o haviam traído em muitas situações.
«Pela Vida, pelo amor em vão, pelo amor a valer, pelos amigos, pela alegria, pelas gargalhadas, pelos olhares, pela música? Sim. Estou.» - disse a sorrir. E voou. Rumo ao sonho daquela noite de São João.
Fibonacci

Hmmm... Momentos deliciosos

Momentos deliciosos.
Hmmm...
Sem dúvida.
Sim, têm razão. Não me posso esconder atrás das palavras, ou ainda me perco. Não posso fingir um labirinto de emoções, ou ainda deixo de sentir o sal. Mas hoje, sim, hoje nada disso pode acontecer.
Hoje, sim, hoje o mundo é bonito e redondo como uma laranja acabada de descascar que provoca o riso e a surpresa de quem é salpicado por um jacto de sumo.
Hoje, sim, hoje fartei-me de tirar fotografias, fartei-mede parar para dar tempo. Dar tempo ao cérebro para guardar as imagens, sons e sensações. E dar tempo ao coração para guardar os nossos sorrisos, gargalhadas, gritos, arrepios e canções.
Hoje, sim, hoje não me preocupo se existe mais alguém.
Hoje, sim, só hoje.
Se calhar, aquela mesa nunca mais vai ver um jogo como aquele (uma canção e uma gargalhada, no fundo). Ou então, se calhar, este foi apenas o primeiro de uma grande série (sim! eu não tenho medo de sequelas).
Se calhar, aquele baloiço nunca mais vai ser tão martirizado, nunca mais vai ser um avião tão importante para quem só queria voar. Ou então, se calhar, como ainda não caiu, ainda vai ver alguém cair e rir do joelho esfolado que queria ser parapente.
Se calhar, aquela mesa nunca mais vai suportar um lanche assim. Tantos cotovelos lá apoiados, tantas cabeças apoiadas nos cotovelos lá apoiados, tantas gargalhadas e gritos cantados apoiados nas cabeças apoiadas nos cotovelos lá apoiados. Ou então, se calhar...
Hoje, sim, hoje eu vivi.
E o galo nunca me vai deixar esquecer isso.
Fibonacci

domingo, junho 18, 2006

Mais vícios

Como qualquer vício, não sei como começou. Nem sei porquê. Só sei que as palavras têm de sair.
E depois... Depois vem aquele sorriso embaraçado de quem nem sabe o que escreveu, aquele orgulho envergonhado, as leituras seguidas e repetidas na voraz ansiedade de me distanciar do que é meu e só meu (como se o achasse possível). A voraz ansiedade de o tornar propriedade de outro, do Outro que o tornará, verdadeiramente, real. E divirto-me a pensar que posso escolher o Outro. E és tu. Que tu vais ler o que escrevi, naquela pose de conhecedor dessa arte, no desnível de ombros de atenção, na testa enrugada e olhos embevecidos. Porque sabes, não finjas que não, que escrevo para ti.
Disseram-me uma vez que, quando sabemos do que escrevemos, sabemos escrever. E, por muito que eu tente contrariar o meu instinto, tu és sempre o meu texto. Talvez te conheça ainda melhor do que pensava...
As palavras são realidades maravilhosas. Fazem-te real. O meu vício de palavras não é um vício de ti. O meu vício de palavras é um vício de te tornar real quando não o és.
É... Provem somente da minha vontade subconsciente de me tornar um bocadinho deusa e te poder trazer para aqui quando estás longe. A ti e a todas as realidades que, todos os dias, me tornam mais eu.
Volto à minha posição. Simples objecto das palavras. E da pontuação. E da gramática e da morfologia.
Sabes.... Não há patrões melhores.
Fibonacci

quinta-feira, junho 15, 2006

Estou feliz agora

Beija-flor que trouxe meu amor
Voou e foi embora
Olha só como é lindo meu amor
Estou feliz agora

Agradeço por estar aqui
Manifestar a emoção
E colocar minhas ideias, sentimentos em forma de canção
Agradeço por poder cantar
E ver você ouvir
E tentar entender essa mensagem
Que eu quero transmitir

Beija-flor que trouxe meu amor
Voou e foi embora
Olha só como é lindo meu amor
Estou feliz agora
Natiruts

O mundo é um lugar estranhamente feliz. É engraçado como uma canção me faz observar os outros e a mim própria de maneiras tão diferentes. É engraçado como, ouvindo certas canções, tu de repente existes. E eu rio outra vez. Aquele riso de quem pressente que a inspiração está a voltar...
Tu sorris,
E eu vou atrás, sorrio.
Tu corres,
E eu vou atrás, corro.
Tu ris,
E eu vou atrás, rio.
Tu páras e olhas-me.
E eu vou atrás, páro e olho-te.
Mas então, eu vou sorrir
Depois correr e rir
Vou parar e olhar-te.
Aí, vais ver.
Eu vou dar um passo em frente, para o precipício.
E tu vens atrás
(dás o passo do meu pé esquerdo esquecido)
Então vamos os dois
Apenas desafiar a gravidade.
Rir na cara dela.
Porque ela não existe para nós.
Fibonacci

segunda-feira, junho 05, 2006

Revoltas e Revoltas

Aquele ar. Aquela pose de quem espera a máquina que não funciona sem querer que ninguém repare. Aquele riso vindo do nada. Aquele olhar tão direccionado para esse mesmo nada que deixa qualquer pessoa a sonhar com o tudo focado em si. Tudo nele é estranho, sabes?
Os phones perdidos nos mais longíquos pensamentos. A mão que ensaia no joelho a bateria da música cansada. Os olhos semi-abertos esperam a deixa ideal para começar a cantar. Um cantar suave, para dentro. Ele não quer que ninguém ouça. Mas eu não posso deixar de ouvir. Só não consigo ouvir se canta bem. É apenas um eco rouco, o que ouço. Não é a voz dele. Essa ainda não conheço. Nem sei se quero conhecer.
Acho que prefiro que o mistério se mantenha. Que a diversão continue naquela busca desenfreada e oportunista de um olhar perdido que eu possa agarrar e levar para casa. Uma busca por uma revolta no meu estômago. O que me descansa é o facto da revolta não se alastrar à cabeça.

Isso, sabes bem, é coisa que só tu consegues.
Fibonacci

sexta-feira, junho 02, 2006

Amigos, sim. Mesmo que não queiram, amigos. =)

É estranho como tudo neste universo se repete. Um sorriso antigo que reaparece, uma cara antiga que conhecemos de algum lado mas não sabemos de onde, o teu olhar… (mas esse foi sempre o teu olhar).

É estranho. Dou por mim, no 10º ano, com aqueles 15 anos todos (a agenda atarefadíssima de um milionário), a enfrentar os mesmos problemas, as mesmas atitudes, as mesmas interrogações, que enfrentava no infantário. E não percebo porquê. Por que é que não pode correr tudo bem? Por que é que os nossos amigos (apesar de tudo, tive de apagar quando escrevi “aqueles que considerava amigos”; eles são, definitivamente, amigos) se escondem ou fogem ou gritam e choram e riem apenas quando não estamos presentes? Não percebo e isso anda a corroer-me por dentro, tal térmita, tal bife num copo de Coca-Cola. Podiam falar. Resolver. Dizer: «Não gosto de ti. Já não sou teu amigo. Já não te convido para a minha festa de anos.» Era mais fácil. Era assim que era no infantário.

Mas na semana a seguir, era ver-nos a brincar todos juntos no escorrega.

As palavras só nos afastam enquanto não as dizemos. Aí sim, são importantes e ferozes e cruéis. Depois de ditas, são só isso. Palavras. Não magoam sequer. Porque existe uma Palavra maior que as outros palavras. E, apesar de tudo, essa palavra não se diz, essa palavra sorri-se.
Fibonacci