sábado, junho 30, 2007

Nada

Lúcia lia e gostava. Gostava da carta que ele lhe escreveu. A saboreá-la, pedacinho a pedacinho, leu-a toda, muitas vezes, leu as poucas palavras pequenas. Ele não dizia nada na carta. Nada de novo, nada de velho. Era uma carta oca, daquelas que até deviam fazer barulho, pensava. Mas Lúcia gostava e continuava a ler outra vez a carta, tão insignificante nas suas três páginas.
Lúcia odiava cartas. Cartas lentas, atrasadas, substitutas mal ensaiadas de uma boa conversa. Mas aquela carta, oca e lenta, preenchia-a. E cada vez mais.
Página dois. Continua sem dizer nada. Nem mesmo nas entrelinhas, nada.
Na página três, um início de alguma coisa, mas era fumo sem fogo. Era nada. O mesmo nada que preenchia o vazio daquelas três páginas cheias.
E nem na despedida, nem na assinatura, Lúcia não lia nada de nada. E gostava.
Nunca tinha recebido uma carta assim.
Tão cheia do nada, vazia de olhar, repleta do tudo que um buraco negro suga.
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sexta-feira, junho 29, 2007

A fio

Ninguém percebeu exactamente quando foi que o dia tropeçou e finalmente caiu o negro da noite. A percepção era constantemente enganada, por ali. Quando se ia a ver, já não se via nada, nem se sentia. Porque a noite era escura, densa, pesada e extremamente palpável. Tal como se por existir noite não existisse mais nada e mais nada pudesse ser sentido. E o maior divertimento era estender as mãos para as noites, a fio, e agarrá-las, sentir o gelo do vento arranhar os nós dos dedos, e os nós das mãos e dos braços. Muita gente por ali agarrava a noite. Mas nesse dia, ninguém se apercebeu da sua chegada. Ingratos.
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segunda-feira, junho 25, 2007

Se o nosso Verão breve for venha um Inverno comprido

«Todos os dias do ano têm o seu santo cristão
As noites se não me engano só tem o S. João
Noite curta, grande amor à beira rio nascido
Se o nosso Verão breve for venha um Inverno comprido
Pé de meia, pé de dança
Mão morta à porta não bate
Bailar por gosto não cansa
Morrer de prazer não mata
Trevo das quatro folhinhas
Que dás sorte nesta vida,
Prefiro as ervas daninhas
E aquela que é proibida.
Na noite de S. João perdi o amor que eu tinha
Troquei o céu pelo chão e a brasa pela sardinha
Pé de meia, pé de dança
Manguito e rabo de saia
Como é que um santo criança
Vira a cabeça às catraias?
Traz-me caril, malagueta, cravinho e nós moscada
Faremos uma directa em calda bem temperada
Traz-me erva cidreira, hortelã, tomilho e salsa
Faz-me uma grande fogueira para eu saltar descalça.»

Erva proibida, São João do Porto,
interpretado por Diana Basto e Mário Alves



Era uma vez. Finalmente tenho sono e posso dormir. Finalmente estou cansada e posso parar. Finalmente, o Verão. E mesmo finalmente.
Não sei se da mão morta, não sei se da ceguez temporariamente efémera, não sei se da cerveja que não bebi, nem da meta que corri para não cortar. Não sei. Mas só o facto de saber, já me dá a paz necessária. Para sorrir, para não pensar, porque pensar sempre fez mal.
Agora doem-me as pernas e tenho o orgulho ferido. Os calos nos pés são a única coisa que me lembra os quilómetros percorridos, sempre sem sair do sítio. A sensação cutânea de penas arrancadas às asas é pura alucinação, eu sei. Ainda consigo voar.
Troquei o céu pelo chão. Mas o paraíso subaéreo não me atraía assim tanto. Ainda posso cair mais, mas não tenciono. Agora vou andar em círculos, agora vou fechar os olhos. Rodopiar para sempre no que nunca aconteceu.
Fiz a fogueira e saltei-a. Sinto-me plenamente orgulhosa de mim própria.
Cresci. Uns centímetros. Saiu-me um peso de cima. E veio logo outro, sorrateiro, para não me deixar mais dormir. Mas quem quer dormir? Hoje ninguém dorme. O estado de latência e a apatismo aparente são puras hibernações.
E é claro que me sinto sozinha se fui a única a acordar.
Escrita puramente monocromática. Agora sim desiludi-me.

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terça-feira, maio 29, 2007

To hell if I know where love resides.

Young lovers seek perfection.
Old lovers learn the art
of sewing shreds together
and seeing beauty in
a multiplicity of patches.

How to make an american quilt, Jocelyn Moorhouse (1995)

quarta-feira, abril 25, 2007

Liberdade

A Liberdade é uma coisa esquisita. É como o Amor. As pessoas lembram-se dela quando falta. Porque falta. Tantas vezes.
(Jurei a mim mesma que não usaria frases feitas. Mas é difícil. Toda a gente fala da liberdade. E haja liberdade de expressão!, mas imaginação nunca há e sempre é mais fácil citar que criar. Mas eu tento.)
Eu tento dizer como é importante este dia. Mas não quero mentir. Eu nunca vi a liberdade. Para mim, a liberdade é voar. A liberdade é correr e eu corro todos os dias. Se eu não conseguisse, eu ia fechar os olhos com muita força e imaginar que estava a correr. Eu ia sentir o vento na minha cara e a velocidade no pulsar do meu sangue. E eu ia, assim atada, assim fechada, eu ia ver a liberdade. Mas assim, livre, eu corro. E corro. Mas o vento faz-me frio e a velocidade assusta-me. E eu não fecho os olhos e não vejo nem imagino.
A Liberdade é mesmo uma coisa esquisita. É como a Noite. Exige tanto das pessoas. Ela quer energia, ela quer uma visão sensata e sensível, ela quer discernimento, ela quer vontade. Mas as pessoas cansam-se. Cansam-se da luta, da batalha diária contra o comodismo do doce calvário do rio que segue, e segue, mas não escolhe o seu caminho.
A Liberdade é uma coisa mesmo esquisita. É como o Sol. Nasce todos os dias. E, apesar de nada nos dizer que ele vai nascer no dia seguinte, excepto a rotina de uma crença irracional, nós sabemos que sim, ele nasce. Sabemos não por saber mas porque, antes de nascer no Oriente, ele nasce dentro de nós. Mesmo à noite, nós sabemos que o Sol vai nascer. É como a liberdade.
E eu acredito naquela coisa esquisita da qual eu nunca senti falta, aquela que eu nunca vi, aquela que me cansa e aquela que nunca me deu a certeza que aparecer amanhã. Mas acredito. Acredito cegamente. Acredito e continuarei a acreditar.
Acredito como acredito no Amor.
Acredito como acredito na Noite.
Acredito como acredito no Sol.
Acredito nela como em mim, porque somos as duas uma só.
E nem que tenha sido apenas para eu poder estar aqui a escrever a Liberdade vale a pena.
Esta foi uma frase feita. Mas o que aconteceria à imaginação, se não sonhássemos todos o mesmo sonho?

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terça-feira, abril 24, 2007

Gigantes

Eu quero ser grande. Quero ser um gigante. Quero dizer coisas de gigante, lá de cima, onde a chuva não molha.
Quero saber quem sou e quero que o mundo perceba como sou gigante e como sou bem assim.
Quero rodopiar sem sair do sítio, cansada. Quero ser como o mar. Salgada.
Quero olhar para baixo, para as estrelas durante toda a noite e, mal cheguem os primeiros indícios da manhã, quero soprá-las, uma a uma, quero apagá-las.
Quero porque somos. Todos. E eu. E tu. Gigantes.
Posso ser tudo, posso ser o que for preciso. Mas quero ser mais.
Um dia... um dia vou ser mais do que sou agora. Quero jamais esquecer o que começa já a esvair-se da memória.
Quero saber que a solidão cabe toda no meu bolso. Quero guardá-la assim para quando tu vais embora. Quero chorá-la pedante. Mas tu dizes, e eu deito-a fora, que o Inferno já não o posso guardar. Mas posso rir, posso gritar.
Afinal, vou ser gigante.
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terça-feira, abril 10, 2007

Densidade

A noite era uma das noites mais abafadas do ano. Era um bafo impossível e impossível. Um quente sem temperatura, só densidade. O quarto era uma estufa, como a praia era a lua. Os corpos mal aguentavam o lençol e repeliam-no a jorros de suor que deixava um rasto viscoso do mel nos braços, nas pernas e nos cabelos. E, apesar de tudo, aqueles corpos dormiam, semi-adormecidos, semi-enfeitiçados.
Aquela hora foi a hora mais quente e mais bafienta dessa noite. O meu braço não aguentava a pressão do ar que o rodeava e foi em vão que o tentei segurar quando cambou para baixo. Acordei-te a ti e eu acordei por aí. Os teus olhos brilhavam num brilho lustroso e meloso pelo quente, só densidade, do ar da noite. Os meus não sei. De momento, eram só os teus.
E, por instantes brevíssimos, uma brisa gelada arrepiou-me e demorei um tempo a descobrir que era a tua mão. A tua e a minha não se repeliam, como o corpo ao lençol, mas pareciam agarrar-se fortemente e contra o nosso espanto e vontade.
E a partir desse momento, todos os corpos do quarto dormiram. Até eu e até tu. Semi-adormecidos, semi-enfeitiçados. Não deves ter reparado, mas adormecemos imediatamente, finalmente seguros um pelo outro de que o ar não nos abafaria, de que a lua não encheria toda a praia e de que a manhã voltaria e, com ela, a Vida do vento norte.

segunda-feira, abril 09, 2007

Perhaps

You won't admit you love me
And so how am I ever to know?
You only tell me
perhaps, perhaps, perhaps.
A million times I've asked you,
and then I ask you over again,
you only answer
perhaps, perhaps, perhaps.
If you can't make your mind up,
we'll never get started.
And I don't wanna wind up
being parted, broken-hearted.
So if you really love me,
say yes.
But if you don't, dear, confess.
And please don't tell me
perhaps, perhaps, perhaps.
If you can't make your mind up,
we'll never get started.
And I don't wanna wind up
being parted, broken-hearted.
So if you really love me,
say yes.
But if you don't, dear, confess.
And please don't tell me
perhaps, perhaps, perhaps,
perhaps, perhaps, perhaps,
perhaps,
perhaps,
per………….haps
Cake
É tudo uma questão de prespectiva. De ângulo, talvez. Talvez. A indecisão doce e o não saber maravilhoso. E o não pecar. Muito mais cómodo, tão mais cómodo! Se o tudo nunca sair de uma mesma prespectiva nunca ninguém pode afirmar verdadeiramente que existiu, nem mesmo a uma dimensão.
E eu sei como é suposto saber. Sei porque o leio em todo o lado.
Mas saber não chega. Saber dói. E saber sem sentir dói demais.
Preferia não saber. Quem não sabe, não peca. Mas seja por defeito ou por excesso estou terminantemente condenada a saber. E a saber que sabes que eu sei.
E não vale a pena dizer que não será por muito tempo. Porque é por todo o tempo, para mal dos meus pecado, e só porque sei. E quem sabe, pensa. Quem sabe, fica. E eu já só queria ir embora.
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quarta-feira, abril 04, 2007

Respiração

«Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.»
Eugénio de Andrade
De repente, respiro, sim, respiro o grito que nunca me atrevi a saborear. Respiro a alvorada da liberdade. Respiro e choro e grito, como um bebé chora e grita para respirar. Esperneio e grito. E berro tanto que já nem choro. Vou beber veneno. De tanto berrar, vou morrer a rir.
Quero mais-que-profundamente a felicidade. Quero lutar por ela. Mas lutar a sério, no verdadeiro campo de batalha, com sangue, suor e lágrimas. Quero correr atrás dela no meu máximo de velocidade, como gosto de correr atrás da minha sombra só porque sei que um dia a vou conseguir agarrar. Quero esperar pela felicidade. Mas esperar feita espia. Esperar camuflada, como espero o meio-dia para ver o calor do milagre do eclipse da sombra e como espero as sete horas da tarde como a hora perfeita da união da areia e do mar. Quero conseguir a felicidade como gosto de conseguir as coisas mais difíceis. Quero gritar que a consegui quase tanto como grito que a quero conseguir.
Quero mesmo ser feliz. E quero que seja difícil. Quero consegui-lo só por mim, mas nunca há-de ser por mim só.
O determinante possessivo dessa palavra é invariável, infatível e cruelmente plural.
Sempre foi.
E sempre há-de ser.
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domingo, abril 01, 2007

Quase, quase

Caresse sur l'océan
Pose l'oiseau si léger
Sur la pierre d'une île immergée
Air éphémère de l'hiver
Enfin ton souffle s'éloigne
Loin dans les montagnes
Vire au vent tournoie déploie tes ailes
Dans l'aube grise du levant
Trouve un chemin vers l'arc-en-ciel
Se découvrira le printemps
Calme sur l'océan.
Christophe Barratier, Bruno Coulais
A calma do oceano, ou do próprio Tempo, só existe como mais uma maneira esquisita de nos tentarmos adaptar aqui.
Dizer que se passou quase, quase um ano é tão ridículo! Tão ridículo marcar um ponto ou outro e correr para ele como se fosse o fim. Ou o princípio. E nem é. Nem princípio nem fim. Nem nada.
Fazer quase, quase um ano só serve mesmo para parar. Parar, esticar bem os dedos, sentir, parar, dilatar bem as narinas, absorver, parar, afinar o mais possível os ouvidos, ouvir, parar, preparar as papilas gustativas, saborear. Sentir, absorver, ouvir, saborear e intuir tudo o que agora quase, quase é.
E isso, constato, é quase, quase igual ao que era, há quase, quase um ano atrás.
Reparo que só mudou uma coisa. Eu. E mesmo eu descrevi um círculo. E mesmo assim não o descrevi muito bem. Apenas me habituei a estar mais atenta. A estar permanentemente faminta por inspirações, expirações e explicações, por reflexos e por fantásticas convulsões de sentimentos que pudesse exteriorizar, sem mais nem menos, e tão cruelmente como o brilho mais-que-metálico de uma faca afiada. Depois abrandei. Depois fugi disso porque, institivamente me levava ao mesmo sítio. E, por parar, percebi que voltei ainda a um sítio mais próximo.
E cá estou. Quase, quase um ano depois. Quase, quase igual. Quase, quase uma pessoa maior. Quase, quase um gigante (agora vejo perfeitamente o teu orgulho de me teres ensinado que eu não passava de uma egoísta intelectual). Antes achava que escrevia porque queria. Agora aprendi que escrevo porque tem de ser. Senão, tudo muda. Senão, não presto. Senão, não penso. E se não pensar, não sonho. E o sonho afinal sempre comanda a vida. E é por isso que, neste ano que quase, quase começa (ou recomeça, ou sei-lá-o-quê), vou dedicar-me a outros objectivos. Vou marcar o céu e o infinito. Marcá-los como a única meta. Sei que não chegarei lá. Mas, no fundo, como em tudo o que fazemos, o mais importante é o caminho.
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terça-feira, março 27, 2007

Não deixes

Eu vi que eu sou capaz
Eu posso até sentir
Isso vai fazer-nos tão bem
Não nos deixei mentir
E agora tanto faz
Vou dar o mundo a quem
E aparece assim
Acendeu-se a luz
Estão vivos outra vez
Amar é bom se houver
No fundo de um de nós
Alguma solidão
Eu calo a minha voz
É tão bom ser mulher
Descobrir quais são
E aparece assim
Acendeu-se a luz
Estão vivos outra vez
Se é tão bom de ouvir
Vivo para ti
Até o nosso amor morrer
Se eu não for capaz
Eu espero vê-lo em ti
Eis como me ajudar
Sentir não é mostrar
E dar não é sentir
É morrer em paz
E aparece assim
Acendeu-se a luz
Estão vivos outra vez
Se é tão bom de ouvir
Vivo para ti
Até o nosso amor morrer
Mas deixa o nosso amor morrer
Deixa Morrer, Ornatos Violeta
Não o deixes morrer. Não. Não me ajudes. Não te ajudes. Sentir não é mostrar. E dar não é sentir. Sentir é algo muito mais infinitamente maior que morrer. Não deixes o nosso amor morrer, não o deixes morrer que ele ainda não sentiu. Porque sentir é dar e dar como quem recebe ou receber como quem dá. Como quem sente.
E eu vivo para ti, eu calo a minha voz. E a tua, e a do mundo. Enquanto ele viver, eu nem vivo nem morro. Eu só sinto. Sinto como quem dá e como quem mostra. Como um grito que se dissipa na atmosfera rarefeita, um grito como uma melodia estranha, a harmonia perfeita do Homem e do gesto. Do vácuo e da nossa velocidade nele, superior, mas tão superior!, à da luz ou do som.
Amar é tão bom se houver no fundo de um de nós alguma solidão. Mas daquela solidão tão própria, a solidão acompanhada. A solidão que sorri sozinha quando alguém aparece sem seres tu ou eu. A solidão que é solidão na distância e ainda é mais solidão no abraço. Na angústia desesperada de somente o próprio amor saber que quer viver. Se nem nós...!
Mantém-no vivo, ele não precisa de estar ligado às máquinas.
Não o deixes.
Deixa-o sentir.
Talvez assim ele viva.
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domingo, março 25, 2007

A mesma

«Gosto quando a minha mãe pega no meu cabelo.
Dizem que sou parecida com ela, em certas expressões, igual.
Gosto quando pega no meu cabelo e tenta entrelaçá-lo, em vão.
Dizem que temos o mesmo feitio e isso sinto-o na pele. Na minha e na dela.
Gosto quando, ao entrelaçá-lo, se debate para que o inconstante escalado caiba todo enrolado na sua mão.
Dizem que saio a ela como saí dela e só me custa que ela adivinhe tão rapidamente o que nem eu imagino que vou pensar.
Penso muitas vezes que o adivinha em mim porque apenas já o pensou nela.
Mas ela diz que não.
Excepto quando pega numa mecha do meu cabelo e tenta, em vão, entrelaçá-lo.
Pega nele como eu imagino que pegou em mim quando era tão pequenina que quase cabia na palma da sua mão.
Agora só caibo nos palmos do seu abraço.
E é por isso que, às vezes, pega no meu cabelo e tenta entrelaçá-lo, em vão. Em vão, como se quase coubesse na palma e eu me agarrasse aos dedos brancos e finos, finos e brancos de puxar para a luz outros que cabem noutras palmas.
E é por isso que sinto o peso de ser tão igual a ela. E ainda é mais por isso que sinto o imenso orgulho ao ouvir o quanto somos a mesma.
E cada vez mais, dizem.»
Fibonacci

quarta-feira, março 21, 2007

«Um sopro mais doce que a esperança»

Lugares comuns

Disseram-me ontem que a morte
é só o lugar comum da vida
Dá lugar à sorte, à fortuna e à traição
Dá a vez ao azar, ao amor de perdição.
Disseram-me que não parecia uma saída
mas um sufoco
Um ardor que arde mais a quem está vivo
que a quem está morto.
Disseram-me para não morrer que a morte mata
Disseram-me os venenos certos, disseram-me a data
Disseram-me as luas e as estrelas para tal
Para morrer sem igual.
Disseram-me a morte leve e a pesada, disseram-me mesmo assim
que é uma fachada
de uma velha casa e poeirenta onde nunca ninguém entrou.
Disseram-me baixinho para não repetir
para não dizer que foi casada
Para não a cansar, para a não dormir.
Disseram-me ainda que a morte menina
(A morte que uns querem, todos temem e ninguêm vê
Essa morte muito maior)
Disseram-me para não falar dela
e não falei.
Disseram-me antes, disseram, jurei, disseram-me segura,
Para não me deixar cair na candura
Da morte vivida,
Da vida doçura,
No amargo fazer nada quando
se podia fazer
No doce ressonar quando
se podia viver.
Fibonacci

sábado, março 17, 2007

Azul

O céu abriu-se ontem. Numa magnanimidade desmedida, o céu abriu as janelas de par a par e deixou entrar os raios azuis e novos do sol, como um grito desmesurado ao Tempo. Abriu-se de uma maneira que não enganou ninguém. Por pouco, lembrou-nos que há mais cores na paleta que não o cinzento. E que o Verão não é uma miragem. Pode exisitir mesmo.
À primeira impressão do calor natural em meses, à primeira visita do criador, ao seu primeiro abraço, estranhei a primeira promessa. Fugi e continuei a estranhar. Porque sempre desejei mas nunca acreditei que o Verão chegasse mesmo. Porque a maior parte das coisas que desejamos muito, não acreditamos que cheguem mesmo. E é isso que nos faz gostar tanto delas. O verdadeiro teste é tê-las na mão e aí ainda ter mais saudades delas do que quando não as temos em nós. O verdadeiro teste é ver o Verão chegar e correr mais para ele do que quando o esperámos no Inverno. E o verdadeiro resultado, o único, é que nos vamos aperceber que chegamos ao Verão e a cor que tanto ansiávamos, tapamo-la com os óculos escuros. E o calor que tanto quisemos, afugentamo-lo com as ventoinhas.
Mas este ano não. Os seus raios azuis e novos prometeram aquela primeira promessa e eu acredito.
Vou correr a sair de casa para morrer de calor.
Vou abrir os olhos para a cor mais escondida,
vou acordar as sestas mais pesadas,
vou adorar o mar gelado e o próprio gelo a derreter.
Vou deixar cair tudo o que em mim que é Inverno para que, mal chegue Agosto, deseje intensamente sentir de novo o calor pequenino das castanhas assadas e de novo ver as folhas a cair vermelhas.
Vermelhas e laranjas porque, apesar de tudo e apesar do Tempo, não vou nunca esquecer o cheiro do Verão.
Fibonacci

quarta-feira, março 14, 2007

Cem Anos de Solidão

«Então deu outro salto para se antecipar às predições e ver a data e as circunstâncias da sua morte. No entanto, antes de chegar ao verso final, já tinha percebido que não sairia nunca desse quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no momento em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo o que neles estava escrito era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a Terra.»
Cem anos de Solidão, Gabriel García Marquez
E se tal estiver previsto e escrito nos pergaminhos indecifráveis? A última corrente de vida que por fim sopra é a esperança da sentença já suportada por outros. Porque se há coisa que se aprende é que o tempo não passa, o tempo arredonda-se um pouco mais, porque ele já é redondo.
Uma intensa sensação de dejá vu. O dejá vu que foi o crime quase perfeito. O dejá vu mais perfeito que esse crime.
Quis quase morrer e vaguear como sombra como as sombras que por lá vagueavam antes mesmo de quase se apagarem. Revoltei-me e descarrilei do comboio dos três mil do massacre da estação. Olhei para aquela que foi quase a minha casa e chorei pelo Santo António escondido e as moedas de ouro, pela descendente que ascendeu ao céu, pelas formigas vermelhas que a corroíam, pelos intermináveis anos de chuva e a miséria da seca. Morri de medo do rabo de porco e arrependi-me pela loucura tão lúcida que se amarrou a uma árvore.
Fechei o livro e a primeira reacção foi de alívio. Pois que não haja mais estirpes assim!
Abri-o outra vez e arrependi-me de tal repúdio à história maior, à síntese mais-que-perfeita do mundo.
Porque também não houve solidão mais sonhada e mais morrida. E para morrer assim, talvez valha viver melhor.
Fibonacci

quarta-feira, março 07, 2007

Ontem

Ontem foi ontem. Inexplicavelmente ontem. E ontem passou sem ninguém se aperceber que era ontem. Eu apercebi-me. Mas só mesmo ao princípio e quase, quase no fim. E ontem, ou melhor, hoje a pensar que era ontem, lembrei-me do outro ontem. Que já foi muito mais ontem do que hoje é. Esse ontem, hoje, é quase amanhã. Não dá nem para disfarçar, pois não?
Ontem, ninguém soube que era ontem. Eu soube. Pela primeira vez, soube. Se calhar, só mesmo eu. Mas eu prefiro pensar tu tens melhor memória e continuo a prefirir pensar que este ontem já passou por ti muitas vezes. Mas se calhar não. Se calhar não passam de preferências minhas.
Ontem nem é assim tão importante. Mas é bonito, um pretexto, uma desculpa para rir. Rir à descarada. E, quando ninguém estiver a ver, sorrir baixinho. Para ninguém mais ouvir. Tu conheces o meu disfarce.
Ontem foi simplesmente ontem. Ininterruptivamente ontem. E ninguém reparou.
Nem tu.

sexta-feira, março 02, 2007

Desta vez

Os dias passam demasiado depressa. O mar aqui mesmo à frente angustia-se com isso mesmo e apressa-se, sempre revoltado com tudo o que não acontece. É como eu. No fundo, somos almas gémeas, eu e o mar.
E vou descobrindo, assim, à beira dele, que mais que doer a saudade do que passou, ou do que podia ter acontecido, dói a saudade do que ainda se poderá passar. Porque o que passou, passou e o que não passou, não passou e já não incomoda mais. Agora o que será, será e ninguém sabe. E isso do princípio da causalidade... Hume tinha razão. É crença.
Mas era tão bom se pudesse acreditar.
(Entra o génio maligno, como que tentando não ser visto)
E por isso perco-me nas mundanices terríveis que me deixam esquecida do resto.
Por isso precisei de voltar aqui, outra vez, como no princípio.
Por isso preciso de fugir de mim outra vez.
Desta vez, numa fuga maravilhosa e esquecida, anamnésica.
Desta vez, sem me contentar com o que tenho.
Desta vez, sem lamúria alguma por gole.
Desta vez, sem dizer adeus.
Desta vez, a beber veneno e a morrer de rir.
Desta vez, nós os dois.
Fibonacci

domingo, fevereiro 18, 2007

Desafinado



Se você disser que eu desafino amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados tem o ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que deus me deu

Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, isto é muito natural
O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também tem um coração

Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor
Ele é o maior que você pode encontrar
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peitoBate calado, que no peito dos desafinados
Também Bate um Coração

Tom Jobim

«Se você disser que eu desafino, eu morro de rir. Porque eu sei que diz. Porque eu sei que quando diz tal coisa se envergonha e quase chora e rebola no chão de tanta gargalhada. Você mente cada vez que me diz tal coisa, mente com quantos dentes tem nessa boca e com quanto ritmo lhe corre por essas veias. Revela-se a cada mentirinha que diz, que pensa que me magoa. E eu a você. Não, não me acredito que a sua beleza se possa enganar.

Mas na nossa música, esquecemo-nos do que somos fora dela. Eu isto, você aquilo. Isto tão diferente daquilo. Mas um único peito bate, quando somos os dois. E tudo o que você diz, você cala nesse sorriso. E tudo o que eu berro, não faz mossa. Não magoa, nem é ouvido sequer. Porque só esse compasso marcado, que isto é tão natural!, se impõe: o bater afinado do seu coração.

Não, não falará assim do nosso amor. Este é o maior que você pode encontrar. Você com a sua música vai-me sempre lembrar do principal. Calado, a rir baixinho, sussurrando, no fundo do meu peito bate e bate, que bate, um coração. O seu.»

Fibonacci

domingo, fevereiro 11, 2007

Abraço (a luz do etéreo)

«Mas não, não é luar: é luz do etéreo.»
Fernando Pessoa
É outra luz de outro etéreo qualquer. Quiçá, é essa ausência quente dessa luz. É esse escuro em que corro a fechar meus braços, e a correr meus olhos e a encostar meu ouvido ao bater sincopado desse coração. Num equilíbro desmesurado do éter ou pureza inicial, Cronos não nasce, nem morre. Porque morte morrerá. E o nascer, esse nascer, porquanto sobra para nós. A minha mão. E a tua. Porque a minha se perde na tua. Elas confundem-se, a olho nu. A subtileza errónea do início desmancha o feitiço do tempo perdido, no nosso mundo racional. Mas elas lá melhor se entendem. E falam. Falam tanto.
El-rei tarda e o prenúncio foge.
Um silêncio culpado de quem roubou o luar de outrém - só as mãos continuam num parlapier desgraçado. (Acusam-nos agora de furto completamente desqualificado)
El-rei não vem, não.
El-rei já está aqui.
Fibonacci